Análise & Opinião

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A evolução de James Bond, e para onde ele pode ir agora

30/9/2021

Com quase 60 anos de existência, 007 é certamente uma das franquias mais duradouras do cinema. Observando a evolução desses filmes ao longo dos anos, porém, é hora de nos perguntarmos para onde ela pode ir no futuro, e mesmo se deveria continuar.

escrito por
Luis Henrique Franco

Com quase 60 anos de existência, 007 é certamente uma das franquias mais duradouras do cinema. Observando a evolução desses filmes ao longo dos anos, porém, é hora de nos perguntarmos para onde ela pode ir no futuro, e mesmo se deveria continuar.

escrito por
Luis Henrique Franco
30/9/2021

É difícil dizer que um personagem da cultura pop tenha sido mais polêmico do que James Bond. Tendo surgido nos cinemas no início dos Anos 60, o notório espião britânico logo fez fama como um galanteador e conquistador de mulheres, dotado com uma inteligência e astúcia peculiar e um carisma que muitas vezes o ajudava a sair de enrascadas. Com todas essas características, Bond se tornou um modelo a ser seguido para os homens de uma época.

Contudo, vários desses valores, que tanto a sociedade quanto o cinema um dia exaltaram, hoje em dia são questionados e colocados em debate. Em seus quase 60 anos de existência, 007 viu a sociedade mudar de maneira extremamente radical em alguns pontos. Isso não significa, contudo, que o agente britânico tenha acompanhado todas as mudanças. Sua maior evolução foi vista apenas em sua última versão, interpretada por Daniel Craig. Aqueles que se encontram entre ele e a primeira versão, interpretada por Sean Connery, sofreram mudanças para remover alguns dos aspectos mais tóxicos dessa primeira versão, mas nem por isso se tornaram exemplos a serem seguidos por todos os tempos.

Pode ser difícil para alguns fãs aceitarem isso, mas depois de 60 anos, se um personagem quer continuar a ser aclamado pelo público, ele precisa mudar e se adaptar à nova era. E essa mudança muitas vezes precisa ser profunda, afetando aspectos que poderiam ser visto como pilares do personagem. Mas, se esses "pilares" não podem ser alterados, talvez seja melhor que tal personagem não continue a fazer filmes após tanto tempo. Então, eis a dúvida: é possível realizar uma mudança tão radical em 007? E se for, como fazer isso?

A POLÊMICA HISTÓRIA DE UM PERSONAGEM

Com a estreia de 007 Contra o Satânico Dr. No, em 1962, o mundo conheceu a primeira versão cinematográfica do espião James Bond. Dito como um agente carismático e elegante, o 007 de Sean Connery também foi bastante marcado pela sua irreverência e seus métodos muitas vezes brutos. Métodos esse que ele usava não apenas contra seus inimigos, mas também para tirar informações de possíveis aliados ou das mulheres com quem ele se relacionava. Por esse comportamento, Sean Connery é talvez a versão do 007 mais criticada atualmente, principalmente pelo fato de que seu jeito agressivo sempre o levava a situações onde ele forçava suas parceiras a coisas que elas não queriam fazer.

Sean Connery fumando um cigarro como 007, em uma das primeiras cenas de O Satânico Dr. No

E tal comportamento certamente se tornou pior quando o próprio ator disse, em uma entrevista em 1965, não ver problema em bater em uma mulher. Mesmo que tal entrevista não dissesse respeito ao personagem em si, fica claro que a associação deste com o ator começou a causar problemas para a franquia. Mesmo com essa polêmica em suas costas, porém, Connery manteria o personagem até 1969, quando foi substituído por George Lazenby em A Serviço Secreto de Sua Majestade, apenas para retornar ao papel uma última vez em Os Diamantes São Eternos, de 1971.

O ator Sean Connery, que nos anos 60 causou polêmica por afirmar não ver crime em bater numa mulher.

Com a chegada dos Anos 70, a franquia passou por algumas modificações. A versão do personagem de Roger Moore mante o carisma e a astúcia do espião, mas removeu alguns de seus traços mais violentos. O Bond de Moore era muito mais um galanteador, que conquistava as mulheres com seu charme irreverente e não trouxe consigo muitas críticas a respeito de seu tratamento com as mulheres. Mas mesmo assim, alguns traços dos filmes e seus enredos permaneceram, colocando mulheres em situações rebaixadas, mesmo que o protagonista não as agredisse. Somou-se a isso um certo desgaste da própria franquia, que lutou para manter a polaridade mundial entre seus principais conflitos, em uma era em que a Guerra Fria parecia a caminho de se encerrar. Sem essa divisão do mundo, 007 teve dificuldades em se adaptar à nova realidade por vários anos.

Roger Moore como 007, que trouxe uma era mais cômica para o personagem e removeu alguns de seus traços mais agressivos

Essa dificuldade se tornou clara durante as eras de Timothy Dalton e Pierce Brosnan. Na questão das polêmicas sociais, o personagem oscilou entre os dois atores, retornando ao seu lado mais agressivo com Dalton apenas para regressar ao galanteador com Brosnan, cujas interpretações não conseguiam vender nem mesmo esse lado do personagem em alguns casos. Filmes como O Amanhã Nunca Morre satirizaram a condição do personagem, mas pouco fizeram para melhorar suas características.

Timothy Dalton e Carey Lowell em cena de 007 - Licença para Matar. Dalton trouxe de volta um pouco da agressividade original do personagem.

Foi só com a chegada de Daniel Craig em Cassino Royale que o personagem passou por uma fase maior de autorreflexão e crítica, apresentando inicialmente as mesmas características questionáveis para, aos poucos, ir alterando-as ao longo dos filmes. Essas mudanças contribuíram para transformar James Bond em um personagem mais humano, suscetível a fragilidades e a complexidades. E é justamente por causa dessas mudanças que os realizadores atuais da franquia podem olhar para o seu passado e apontar os erros das versões antigas, como fez o diretor de Sem tempo para Morrer, Cary Fukunaga, recentemente.

Cary Fukunaga, diretor de 007 - Sem Tempo para Morrer, que afirmou recentemente que o 007 de Sean Connery era um estuprador

AS MARCAS RUINS E O PESO DAS ANTIGAS CONSTRUÇÕES

Mas mesmo a evolução pela qual 007 tem passado nos últimos filmes ainda não privou a franquia de algumas de suas características mais questionáveis. Mesmo com as mudanças trazidas para a era Daniel Craig, os filmes ainda apresentam "Bond-Girls" extremamente sexualizadas e que não têm uma função na narrativa além de morrerem como forma de gatilho para impulsionar o personagem. Mesmo que esses acontecimentos sejam apontados e criticados em mais de um filme, eles continuam a acontecer, e a sexualização de mulheres ainda é uma constante nos filmes.

Ursula Andress, a icônica Honey Rider, primeira Bond-Girl da história, em sua marcante cena de biquíni na praia

Constante essa que não parece estar em vias de ser apagadas. Infelizmente, a franquia 007 se construiu sobre alguns traços que, na época de sua criação, não eram tão apontados e criticados como são hoje. Mas depois de quase 60 anos sobre esses aspectos, é difícil apagá-los por completo, mesmo que isto seja desejável. E isso leva ao questionamento de o quanto James Bond pode continuar a existir nos dias atuais.

Está claro que os realizadores querem mudar o personagem, mas estas mudanças estão ocorrendo de maneira muito lenta, talvez por um medo de que estas alterações afastem fãs da franquia ou por uma dificuldade dos realizadores de perceberem o verdadeiro grau do problema que são alguns desses traços da franquia. De uma forma ou de outra, essas mudanças são lentas, e talvez nunca se completem. O que nos leva de volta à questão: O que 007 pode fazer para se encaixar nos dias atuais?

O caminho seguido até agora é o da autocrítica. Em vez de apagar por completo esses traços nocivos do personagem, filmes mais recentes optaram por preservá-los e expô-los sob uma visão crítica, revelando seus lados tóxicos e abordando as situações sob um ponto de vista mais realista. É esse mesmo realismo que faz com que o Bond de Daniel Craig seja tão bem recebido, e é esse mesmo realismo que permite que alguns traços do personagem sofram mudanças na forma como são retratados, abrindo espaço para críticas e debates, mesmo que essas características continuem a existir.

O 007 de Daniel Craig, que foi marcado por uma autorreflexão sobre a franquia, mas acabou preservando alguns de seus traços questionáveis.

O FUTURO DA FRANQUIA

Já faz muito tempo que o futuro de 007 nos cinemas vem sendo discutido. A nova fase dos movimentos sociais e da representatividade nos cinemas trouxe algumas das principais franquias e as colocou como foco de uma análise. Em todas elas, seja por um real desejo de promover mudança ou apenas por um interesse comercial, a ideia principal é de como torná-las mais diversificadas, acolhendo um grupo maior de pessoas diferentes.

Dentro desse cenário, com seu histórico de misoginia e má representação de alguns grupos minoritários, 007 se tornou um dos principais focos dessa discussão. E, com o anúncio de que Sem Tempo para Morrer será o último filme de Daniel Craig no papel, uma ferrenha discussão se instaurou a respeito do que será do futuro do personagem, e que mudanças ele pode sofrer para se tornar mais representativo de um grupo diferente de pessoas. Mantendo o personagem como um agente masculino, alguns pensaram sobre a opção de escalar um ator negro para o papel, o primeiro depois de 60 anos e 6 outros atores na franquia.

Em outras discussões, foi cogitada a possibilidade de 007 se tornar uma mulher no futuro, algo sobre o qual o próprio Daniel Craig falou sobre recentemente, afirmando não concordar com essa possibilidade. Para ele, não há motivo para uma mulher interpretar 007; o que deveria acontecer é que os filmes forneçam a mulheres e atores negros papéis tão bons quanto o de James Bond.

Essa visão do ator pode ser uma das melhores possibilidades de evolução da saga. Na possibilidade de criar uma maior representatividade na franquia, em vez de colocar um ator negro ou uma mulher como protagonista, possibilitar que estes tenham papéis melhores, mais importantes e mais bem trabalhados na franquia, talvez até trazendo-os nas posições de diretores(as), roteiristas e produtores(as). Dessa forma, 007 poderia continuar a existir como uma grande franquia do cinema e, ao mesmo tempo, se tornar mais acessível para diferentes grupos sociais, corrigindo assim alguns de seus pontos mais problemáticos do passado.

Daniel Craig, último ator a interpretar 007.

Mas para além desse discussão de como 007 pode evoluir para o seu futuro, pode-se debater também se esse futuro deve ser tão prolongado assim. James Bond foi introduzido no cinema em um cenário de Guerra Fria, e representou muito bem o seu papel em um mundo polarizado, conseguindo, depois disso, evoluir para se tornar um personagem mais complexo. Abandonando algumas características da era da polarização, ele se tornou um grande personagem de ação, adorado por muitos mesmo nos dias de hoje. Ao mesmo tempo, depois de 25 filmes, é óbvio que a franquia já provocou um certo esgotamento.

Construir todas essas mudanças em uma franquia tão amada é certamente um grande caminho, mas é preciso se perguntar até quando James Bond continuará a atrair um público tão grande que justifique sua contínua exploração no cinema, independente de sua versão. 007 é uma franquia lendária do cinema, e não deixará de a ser mesmo com todos os seus problemas. Talvez seja hora de Bond deixar o posto de herói da ação para novos personagens.

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Direção: 
Criação:
Roteirista 1
Roteirista 2
Roteirista 3
Diretor 1
Diretor 2
Diretor 3
Elenco Principal:
Ator 1
Ator 2
Ator 3
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Com quase 60 anos de existência, 007 é certamente uma das franquias mais duradouras do cinema. Observando a evolução desses filmes ao longo dos anos, porém, é hora de nos perguntarmos para onde ela pode ir no futuro, e mesmo se deveria continuar.

crítica por
Luis Henrique Franco
30/9/2021

É difícil dizer que um personagem da cultura pop tenha sido mais polêmico do que James Bond. Tendo surgido nos cinemas no início dos Anos 60, o notório espião britânico logo fez fama como um galanteador e conquistador de mulheres, dotado com uma inteligência e astúcia peculiar e um carisma que muitas vezes o ajudava a sair de enrascadas. Com todas essas características, Bond se tornou um modelo a ser seguido para os homens de uma época.

Contudo, vários desses valores, que tanto a sociedade quanto o cinema um dia exaltaram, hoje em dia são questionados e colocados em debate. Em seus quase 60 anos de existência, 007 viu a sociedade mudar de maneira extremamente radical em alguns pontos. Isso não significa, contudo, que o agente britânico tenha acompanhado todas as mudanças. Sua maior evolução foi vista apenas em sua última versão, interpretada por Daniel Craig. Aqueles que se encontram entre ele e a primeira versão, interpretada por Sean Connery, sofreram mudanças para remover alguns dos aspectos mais tóxicos dessa primeira versão, mas nem por isso se tornaram exemplos a serem seguidos por todos os tempos.

Pode ser difícil para alguns fãs aceitarem isso, mas depois de 60 anos, se um personagem quer continuar a ser aclamado pelo público, ele precisa mudar e se adaptar à nova era. E essa mudança muitas vezes precisa ser profunda, afetando aspectos que poderiam ser visto como pilares do personagem. Mas, se esses "pilares" não podem ser alterados, talvez seja melhor que tal personagem não continue a fazer filmes após tanto tempo. Então, eis a dúvida: é possível realizar uma mudança tão radical em 007? E se for, como fazer isso?

A POLÊMICA HISTÓRIA DE UM PERSONAGEM

Com a estreia de 007 Contra o Satânico Dr. No, em 1962, o mundo conheceu a primeira versão cinematográfica do espião James Bond. Dito como um agente carismático e elegante, o 007 de Sean Connery também foi bastante marcado pela sua irreverência e seus métodos muitas vezes brutos. Métodos esse que ele usava não apenas contra seus inimigos, mas também para tirar informações de possíveis aliados ou das mulheres com quem ele se relacionava. Por esse comportamento, Sean Connery é talvez a versão do 007 mais criticada atualmente, principalmente pelo fato de que seu jeito agressivo sempre o levava a situações onde ele forçava suas parceiras a coisas que elas não queriam fazer.

Sean Connery fumando um cigarro como 007, em uma das primeiras cenas de O Satânico Dr. No

E tal comportamento certamente se tornou pior quando o próprio ator disse, em uma entrevista em 1965, não ver problema em bater em uma mulher. Mesmo que tal entrevista não dissesse respeito ao personagem em si, fica claro que a associação deste com o ator começou a causar problemas para a franquia. Mesmo com essa polêmica em suas costas, porém, Connery manteria o personagem até 1969, quando foi substituído por George Lazenby em A Serviço Secreto de Sua Majestade, apenas para retornar ao papel uma última vez em Os Diamantes São Eternos, de 1971.

O ator Sean Connery, que nos anos 60 causou polêmica por afirmar não ver crime em bater numa mulher.

Com a chegada dos Anos 70, a franquia passou por algumas modificações. A versão do personagem de Roger Moore mante o carisma e a astúcia do espião, mas removeu alguns de seus traços mais violentos. O Bond de Moore era muito mais um galanteador, que conquistava as mulheres com seu charme irreverente e não trouxe consigo muitas críticas a respeito de seu tratamento com as mulheres. Mas mesmo assim, alguns traços dos filmes e seus enredos permaneceram, colocando mulheres em situações rebaixadas, mesmo que o protagonista não as agredisse. Somou-se a isso um certo desgaste da própria franquia, que lutou para manter a polaridade mundial entre seus principais conflitos, em uma era em que a Guerra Fria parecia a caminho de se encerrar. Sem essa divisão do mundo, 007 teve dificuldades em se adaptar à nova realidade por vários anos.

Roger Moore como 007, que trouxe uma era mais cômica para o personagem e removeu alguns de seus traços mais agressivos

Essa dificuldade se tornou clara durante as eras de Timothy Dalton e Pierce Brosnan. Na questão das polêmicas sociais, o personagem oscilou entre os dois atores, retornando ao seu lado mais agressivo com Dalton apenas para regressar ao galanteador com Brosnan, cujas interpretações não conseguiam vender nem mesmo esse lado do personagem em alguns casos. Filmes como O Amanhã Nunca Morre satirizaram a condição do personagem, mas pouco fizeram para melhorar suas características.

Timothy Dalton e Carey Lowell em cena de 007 - Licença para Matar. Dalton trouxe de volta um pouco da agressividade original do personagem.

Foi só com a chegada de Daniel Craig em Cassino Royale que o personagem passou por uma fase maior de autorreflexão e crítica, apresentando inicialmente as mesmas características questionáveis para, aos poucos, ir alterando-as ao longo dos filmes. Essas mudanças contribuíram para transformar James Bond em um personagem mais humano, suscetível a fragilidades e a complexidades. E é justamente por causa dessas mudanças que os realizadores atuais da franquia podem olhar para o seu passado e apontar os erros das versões antigas, como fez o diretor de Sem tempo para Morrer, Cary Fukunaga, recentemente.

Cary Fukunaga, diretor de 007 - Sem Tempo para Morrer, que afirmou recentemente que o 007 de Sean Connery era um estuprador

AS MARCAS RUINS E O PESO DAS ANTIGAS CONSTRUÇÕES

Mas mesmo a evolução pela qual 007 tem passado nos últimos filmes ainda não privou a franquia de algumas de suas características mais questionáveis. Mesmo com as mudanças trazidas para a era Daniel Craig, os filmes ainda apresentam "Bond-Girls" extremamente sexualizadas e que não têm uma função na narrativa além de morrerem como forma de gatilho para impulsionar o personagem. Mesmo que esses acontecimentos sejam apontados e criticados em mais de um filme, eles continuam a acontecer, e a sexualização de mulheres ainda é uma constante nos filmes.

Ursula Andress, a icônica Honey Rider, primeira Bond-Girl da história, em sua marcante cena de biquíni na praia

Constante essa que não parece estar em vias de ser apagadas. Infelizmente, a franquia 007 se construiu sobre alguns traços que, na época de sua criação, não eram tão apontados e criticados como são hoje. Mas depois de quase 60 anos sobre esses aspectos, é difícil apagá-los por completo, mesmo que isto seja desejável. E isso leva ao questionamento de o quanto James Bond pode continuar a existir nos dias atuais.

Está claro que os realizadores querem mudar o personagem, mas estas mudanças estão ocorrendo de maneira muito lenta, talvez por um medo de que estas alterações afastem fãs da franquia ou por uma dificuldade dos realizadores de perceberem o verdadeiro grau do problema que são alguns desses traços da franquia. De uma forma ou de outra, essas mudanças são lentas, e talvez nunca se completem. O que nos leva de volta à questão: O que 007 pode fazer para se encaixar nos dias atuais?

O caminho seguido até agora é o da autocrítica. Em vez de apagar por completo esses traços nocivos do personagem, filmes mais recentes optaram por preservá-los e expô-los sob uma visão crítica, revelando seus lados tóxicos e abordando as situações sob um ponto de vista mais realista. É esse mesmo realismo que faz com que o Bond de Daniel Craig seja tão bem recebido, e é esse mesmo realismo que permite que alguns traços do personagem sofram mudanças na forma como são retratados, abrindo espaço para críticas e debates, mesmo que essas características continuem a existir.

O 007 de Daniel Craig, que foi marcado por uma autorreflexão sobre a franquia, mas acabou preservando alguns de seus traços questionáveis.

O FUTURO DA FRANQUIA

Já faz muito tempo que o futuro de 007 nos cinemas vem sendo discutido. A nova fase dos movimentos sociais e da representatividade nos cinemas trouxe algumas das principais franquias e as colocou como foco de uma análise. Em todas elas, seja por um real desejo de promover mudança ou apenas por um interesse comercial, a ideia principal é de como torná-las mais diversificadas, acolhendo um grupo maior de pessoas diferentes.

Dentro desse cenário, com seu histórico de misoginia e má representação de alguns grupos minoritários, 007 se tornou um dos principais focos dessa discussão. E, com o anúncio de que Sem Tempo para Morrer será o último filme de Daniel Craig no papel, uma ferrenha discussão se instaurou a respeito do que será do futuro do personagem, e que mudanças ele pode sofrer para se tornar mais representativo de um grupo diferente de pessoas. Mantendo o personagem como um agente masculino, alguns pensaram sobre a opção de escalar um ator negro para o papel, o primeiro depois de 60 anos e 6 outros atores na franquia.

Em outras discussões, foi cogitada a possibilidade de 007 se tornar uma mulher no futuro, algo sobre o qual o próprio Daniel Craig falou sobre recentemente, afirmando não concordar com essa possibilidade. Para ele, não há motivo para uma mulher interpretar 007; o que deveria acontecer é que os filmes forneçam a mulheres e atores negros papéis tão bons quanto o de James Bond.

Essa visão do ator pode ser uma das melhores possibilidades de evolução da saga. Na possibilidade de criar uma maior representatividade na franquia, em vez de colocar um ator negro ou uma mulher como protagonista, possibilitar que estes tenham papéis melhores, mais importantes e mais bem trabalhados na franquia, talvez até trazendo-os nas posições de diretores(as), roteiristas e produtores(as). Dessa forma, 007 poderia continuar a existir como uma grande franquia do cinema e, ao mesmo tempo, se tornar mais acessível para diferentes grupos sociais, corrigindo assim alguns de seus pontos mais problemáticos do passado.

Daniel Craig, último ator a interpretar 007.

Mas para além desse discussão de como 007 pode evoluir para o seu futuro, pode-se debater também se esse futuro deve ser tão prolongado assim. James Bond foi introduzido no cinema em um cenário de Guerra Fria, e representou muito bem o seu papel em um mundo polarizado, conseguindo, depois disso, evoluir para se tornar um personagem mais complexo. Abandonando algumas características da era da polarização, ele se tornou um grande personagem de ação, adorado por muitos mesmo nos dias de hoje. Ao mesmo tempo, depois de 25 filmes, é óbvio que a franquia já provocou um certo esgotamento.

Construir todas essas mudanças em uma franquia tão amada é certamente um grande caminho, mas é preciso se perguntar até quando James Bond continuará a atrair um público tão grande que justifique sua contínua exploração no cinema, independente de sua versão. 007 é uma franquia lendária do cinema, e não deixará de a ser mesmo com todos os seus problemas. Talvez seja hora de Bond deixar o posto de herói da ação para novos personagens.

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Com quase 60 anos de existência, 007 é certamente uma das franquias mais duradouras do cinema. Observando a evolução desses filmes ao longo dos anos, porém, é hora de nos perguntarmos para onde ela pode ir no futuro, e mesmo se deveria continuar.

escrito por
Luis Henrique Franco
30/9/2021
nascimento

Com quase 60 anos de existência, 007 é certamente uma das franquias mais duradouras do cinema. Observando a evolução desses filmes ao longo dos anos, porém, é hora de nos perguntarmos para onde ela pode ir no futuro, e mesmo se deveria continuar.

escrito por
Luis Henrique Franco
30/9/2021

É difícil dizer que um personagem da cultura pop tenha sido mais polêmico do que James Bond. Tendo surgido nos cinemas no início dos Anos 60, o notório espião britânico logo fez fama como um galanteador e conquistador de mulheres, dotado com uma inteligência e astúcia peculiar e um carisma que muitas vezes o ajudava a sair de enrascadas. Com todas essas características, Bond se tornou um modelo a ser seguido para os homens de uma época.

Contudo, vários desses valores, que tanto a sociedade quanto o cinema um dia exaltaram, hoje em dia são questionados e colocados em debate. Em seus quase 60 anos de existência, 007 viu a sociedade mudar de maneira extremamente radical em alguns pontos. Isso não significa, contudo, que o agente britânico tenha acompanhado todas as mudanças. Sua maior evolução foi vista apenas em sua última versão, interpretada por Daniel Craig. Aqueles que se encontram entre ele e a primeira versão, interpretada por Sean Connery, sofreram mudanças para remover alguns dos aspectos mais tóxicos dessa primeira versão, mas nem por isso se tornaram exemplos a serem seguidos por todos os tempos.

Pode ser difícil para alguns fãs aceitarem isso, mas depois de 60 anos, se um personagem quer continuar a ser aclamado pelo público, ele precisa mudar e se adaptar à nova era. E essa mudança muitas vezes precisa ser profunda, afetando aspectos que poderiam ser visto como pilares do personagem. Mas, se esses "pilares" não podem ser alterados, talvez seja melhor que tal personagem não continue a fazer filmes após tanto tempo. Então, eis a dúvida: é possível realizar uma mudança tão radical em 007? E se for, como fazer isso?

A POLÊMICA HISTÓRIA DE UM PERSONAGEM

Com a estreia de 007 Contra o Satânico Dr. No, em 1962, o mundo conheceu a primeira versão cinematográfica do espião James Bond. Dito como um agente carismático e elegante, o 007 de Sean Connery também foi bastante marcado pela sua irreverência e seus métodos muitas vezes brutos. Métodos esse que ele usava não apenas contra seus inimigos, mas também para tirar informações de possíveis aliados ou das mulheres com quem ele se relacionava. Por esse comportamento, Sean Connery é talvez a versão do 007 mais criticada atualmente, principalmente pelo fato de que seu jeito agressivo sempre o levava a situações onde ele forçava suas parceiras a coisas que elas não queriam fazer.

Sean Connery fumando um cigarro como 007, em uma das primeiras cenas de O Satânico Dr. No

E tal comportamento certamente se tornou pior quando o próprio ator disse, em uma entrevista em 1965, não ver problema em bater em uma mulher. Mesmo que tal entrevista não dissesse respeito ao personagem em si, fica claro que a associação deste com o ator começou a causar problemas para a franquia. Mesmo com essa polêmica em suas costas, porém, Connery manteria o personagem até 1969, quando foi substituído por George Lazenby em A Serviço Secreto de Sua Majestade, apenas para retornar ao papel uma última vez em Os Diamantes São Eternos, de 1971.

O ator Sean Connery, que nos anos 60 causou polêmica por afirmar não ver crime em bater numa mulher.

Com a chegada dos Anos 70, a franquia passou por algumas modificações. A versão do personagem de Roger Moore mante o carisma e a astúcia do espião, mas removeu alguns de seus traços mais violentos. O Bond de Moore era muito mais um galanteador, que conquistava as mulheres com seu charme irreverente e não trouxe consigo muitas críticas a respeito de seu tratamento com as mulheres. Mas mesmo assim, alguns traços dos filmes e seus enredos permaneceram, colocando mulheres em situações rebaixadas, mesmo que o protagonista não as agredisse. Somou-se a isso um certo desgaste da própria franquia, que lutou para manter a polaridade mundial entre seus principais conflitos, em uma era em que a Guerra Fria parecia a caminho de se encerrar. Sem essa divisão do mundo, 007 teve dificuldades em se adaptar à nova realidade por vários anos.

Roger Moore como 007, que trouxe uma era mais cômica para o personagem e removeu alguns de seus traços mais agressivos

Essa dificuldade se tornou clara durante as eras de Timothy Dalton e Pierce Brosnan. Na questão das polêmicas sociais, o personagem oscilou entre os dois atores, retornando ao seu lado mais agressivo com Dalton apenas para regressar ao galanteador com Brosnan, cujas interpretações não conseguiam vender nem mesmo esse lado do personagem em alguns casos. Filmes como O Amanhã Nunca Morre satirizaram a condição do personagem, mas pouco fizeram para melhorar suas características.

Timothy Dalton e Carey Lowell em cena de 007 - Licença para Matar. Dalton trouxe de volta um pouco da agressividade original do personagem.

Foi só com a chegada de Daniel Craig em Cassino Royale que o personagem passou por uma fase maior de autorreflexão e crítica, apresentando inicialmente as mesmas características questionáveis para, aos poucos, ir alterando-as ao longo dos filmes. Essas mudanças contribuíram para transformar James Bond em um personagem mais humano, suscetível a fragilidades e a complexidades. E é justamente por causa dessas mudanças que os realizadores atuais da franquia podem olhar para o seu passado e apontar os erros das versões antigas, como fez o diretor de Sem tempo para Morrer, Cary Fukunaga, recentemente.

Cary Fukunaga, diretor de 007 - Sem Tempo para Morrer, que afirmou recentemente que o 007 de Sean Connery era um estuprador

AS MARCAS RUINS E O PESO DAS ANTIGAS CONSTRUÇÕES

Mas mesmo a evolução pela qual 007 tem passado nos últimos filmes ainda não privou a franquia de algumas de suas características mais questionáveis. Mesmo com as mudanças trazidas para a era Daniel Craig, os filmes ainda apresentam "Bond-Girls" extremamente sexualizadas e que não têm uma função na narrativa além de morrerem como forma de gatilho para impulsionar o personagem. Mesmo que esses acontecimentos sejam apontados e criticados em mais de um filme, eles continuam a acontecer, e a sexualização de mulheres ainda é uma constante nos filmes.

Ursula Andress, a icônica Honey Rider, primeira Bond-Girl da história, em sua marcante cena de biquíni na praia

Constante essa que não parece estar em vias de ser apagadas. Infelizmente, a franquia 007 se construiu sobre alguns traços que, na época de sua criação, não eram tão apontados e criticados como são hoje. Mas depois de quase 60 anos sobre esses aspectos, é difícil apagá-los por completo, mesmo que isto seja desejável. E isso leva ao questionamento de o quanto James Bond pode continuar a existir nos dias atuais.

Está claro que os realizadores querem mudar o personagem, mas estas mudanças estão ocorrendo de maneira muito lenta, talvez por um medo de que estas alterações afastem fãs da franquia ou por uma dificuldade dos realizadores de perceberem o verdadeiro grau do problema que são alguns desses traços da franquia. De uma forma ou de outra, essas mudanças são lentas, e talvez nunca se completem. O que nos leva de volta à questão: O que 007 pode fazer para se encaixar nos dias atuais?

O caminho seguido até agora é o da autocrítica. Em vez de apagar por completo esses traços nocivos do personagem, filmes mais recentes optaram por preservá-los e expô-los sob uma visão crítica, revelando seus lados tóxicos e abordando as situações sob um ponto de vista mais realista. É esse mesmo realismo que faz com que o Bond de Daniel Craig seja tão bem recebido, e é esse mesmo realismo que permite que alguns traços do personagem sofram mudanças na forma como são retratados, abrindo espaço para críticas e debates, mesmo que essas características continuem a existir.

O 007 de Daniel Craig, que foi marcado por uma autorreflexão sobre a franquia, mas acabou preservando alguns de seus traços questionáveis.

O FUTURO DA FRANQUIA

Já faz muito tempo que o futuro de 007 nos cinemas vem sendo discutido. A nova fase dos movimentos sociais e da representatividade nos cinemas trouxe algumas das principais franquias e as colocou como foco de uma análise. Em todas elas, seja por um real desejo de promover mudança ou apenas por um interesse comercial, a ideia principal é de como torná-las mais diversificadas, acolhendo um grupo maior de pessoas diferentes.

Dentro desse cenário, com seu histórico de misoginia e má representação de alguns grupos minoritários, 007 se tornou um dos principais focos dessa discussão. E, com o anúncio de que Sem Tempo para Morrer será o último filme de Daniel Craig no papel, uma ferrenha discussão se instaurou a respeito do que será do futuro do personagem, e que mudanças ele pode sofrer para se tornar mais representativo de um grupo diferente de pessoas. Mantendo o personagem como um agente masculino, alguns pensaram sobre a opção de escalar um ator negro para o papel, o primeiro depois de 60 anos e 6 outros atores na franquia.

Em outras discussões, foi cogitada a possibilidade de 007 se tornar uma mulher no futuro, algo sobre o qual o próprio Daniel Craig falou sobre recentemente, afirmando não concordar com essa possibilidade. Para ele, não há motivo para uma mulher interpretar 007; o que deveria acontecer é que os filmes forneçam a mulheres e atores negros papéis tão bons quanto o de James Bond.

Essa visão do ator pode ser uma das melhores possibilidades de evolução da saga. Na possibilidade de criar uma maior representatividade na franquia, em vez de colocar um ator negro ou uma mulher como protagonista, possibilitar que estes tenham papéis melhores, mais importantes e mais bem trabalhados na franquia, talvez até trazendo-os nas posições de diretores(as), roteiristas e produtores(as). Dessa forma, 007 poderia continuar a existir como uma grande franquia do cinema e, ao mesmo tempo, se tornar mais acessível para diferentes grupos sociais, corrigindo assim alguns de seus pontos mais problemáticos do passado.

Daniel Craig, último ator a interpretar 007.

Mas para além desse discussão de como 007 pode evoluir para o seu futuro, pode-se debater também se esse futuro deve ser tão prolongado assim. James Bond foi introduzido no cinema em um cenário de Guerra Fria, e representou muito bem o seu papel em um mundo polarizado, conseguindo, depois disso, evoluir para se tornar um personagem mais complexo. Abandonando algumas características da era da polarização, ele se tornou um grande personagem de ação, adorado por muitos mesmo nos dias de hoje. Ao mesmo tempo, depois de 25 filmes, é óbvio que a franquia já provocou um certo esgotamento.

Construir todas essas mudanças em uma franquia tão amada é certamente um grande caminho, mas é preciso se perguntar até quando James Bond continuará a atrair um público tão grande que justifique sua contínua exploração no cinema, independente de sua versão. 007 é uma franquia lendária do cinema, e não deixará de a ser mesmo com todos os seus problemas. Talvez seja hora de Bond deixar o posto de herói da ação para novos personagens.

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