Existe uma diferença alarmante entre o cinema que era produzido a algumas décadas atrás e o cinema que é produzido atualmente. E não é apenas no que condiz aos efeitos especiais. Já é claro para muitos que o cinema feito na atualidade procura sempre dar a seus filmes um ar de "realidade", mesmo quando trata de temas de ficção, comédia ou mesmo fantasia.
Antigamente, os filmes podiam se dar mais ao luxo de ingressarem em aspectos fantasiosos de heroísmo e aspectos claramente imaginários com mais facilidade do que os dias de hoje. Isso era especialmente verdade nos gêneros de ficção, aventura, ação, terror e ficção científica. Era possível colocar aspectos extremamente surpreendentes e claramente feitos com efeitos e falsos, porque havia uma ideia de ver o cinema como uma representação de fantasias, uma porta para mundos diversos e possibilidades infinitas da imaginação. Hoje, há uma preocupação muito maior em dar uma representação de algo real ou possível de ser real, algo que no mínimo seja fundamentado em uma possibilidade de acontecer.

Essa mudança é bastante visível na evolução do tratamento dos filmes adaptados dos universos dos quadrinhos. Mesmo que alguns deles ainda tragam esse traço mais fantástico e de um exagero típico da ficção, a grande maioria deles já não se priva de abordar, mesmo que em detalhes, algumas temáticas mais sérias sobre a realidade em que vivemos, e todos tentam colocar seus personagens, antes vistos como parte de um universo paralelo e ficcional, dentro do mundo real de seu público, uma possibilidade real, mesmo que absurda, para existir no mundo onde as pessoas de verdade vivem. Por causa disso, a cada filme que passa, mesmo os mais extraordinários personagens possuem aspectos de sua personalidade e de seu propósito que são perfeitamente conectáveis pela audiência. Eles se tornam mais humanos, mais reais e mais suscetíveis à nossa simpatia.
Um clássico personagem do mundo dos quadrinhos, o Coringa sempre foi visto como o maior inimigo do Batman. Um palhaço criminoso e capaz de muita coisa para provocar o caos na sociedade, ele foi responsável por algumas das maiores atrocidades do Universo da DC Comics, massuas primeiras representações no cinema procuravam evitar esse lado mais sério, apelando para um aspecto mais cômico e caricato que acompanhava o tom dos filmes de heróis da época. Foi só em épocas mais recentes que esse personagem se tornou um fruto de uma realidade mais terrível mostrada no cinema.
JACK NICHOLSON: A PRIMEIRA TONALIDADE DO VILÃO

Em 1980, foi lançado o primeiro filme longa-metragem do Batman, dirigido por Tim Burton, que fez questão de dar ao filme o tom sombrio e excêntrico pelo qual sua obra ficou conhecida. Logo no primeiro filme, o herói, interpretado por Michael Keaton, teve de enfrentar seu grande arqui-inimigo, o Coringa, interpretado por Jack Nicholson.
Os Anos 8o ainda eram uma época onde filmes de ficção e fantasia podiam extrapolar os limites da realidade em alguns sentidos, por isso o filme de Burton ficou marcado por sua visão bem extraordinária da cidade de Gotham, ao passo que o Coringa de Nicholson foi interpretado com um ar que se assemelhava a uma caricatura, quase fazendo questão de lembrar a todo instante que se tratava de um personagem vindo de um universo de quadrinhos. Nicholson deu a seu Coringa uma excentricidade de acrobacias e gestos cômicos, ao mesmo tempo em que tentava dar a ele uma história como membro da máfia da cidade de forma a trazer o aspecto do vilão mais à tona.
No âmbito geral, Nicholson apresentou uma atuação boa em vários sentidos e conseguiu dar vida ao vilão da primeira adaptação do Batman para o cinema, sendo muito melhor que seus companheiros de elenco. Embora sua presença no filme seja mais excêntrica do que ameaçadora, foi um bom personagem colocado no filme da época, que praticamente não procurou fazer de sua trama algo mais real. Uma grande prova disso é a origem do Coringa, ligada à sua origem nos quadrinhos, contada em A Piada Mortal, onde é revelado que o vilão só se tornou o que se tornou porque, durante um assalto fracassado a uma fábrica, ele foi derrubado em um tanque de produtos químicos que o afetaram seriamente. Essa parte da origem se mantém a mesma no filme, mas Burton fez questão de tirar de cena todo o sadismo e a violência dos quadrinhos originais, optando por deixar apenas o fator da anormalidade fantasiosa que era aceitável na época.
HEATH LEDGER: O PALHAÇO SE TORNA SÉRIO

Anos após sua primeira introdução ao cinema, o Coringa retornou em Batman: O Cavaleiro das Trevas, de 2008, dessa vez interpretado por Heath Ledger. Em face de um novo tempo e de um novo diretor (Christopher Nolan), que já havia optado por fazer de sua trilogia uma visão mais séria e realista do herói e de seu mundo, o vilão de Ledger se tornou memorável por seu aspecto assustador e completamente anárquico, alterando completamente o que foi visto na adaptação de 1980.
Nessa nova visão, Coringa é um emissário do caos. Sem grandes afiliações com a máfia ou com qualquer organização criminosa da cidade de Gotham, ele perambula com sua gangue pessoal, atacando diferentes lugares por aparentemente nenhum motivo e disseminando o pânico pelas ruas. Pelo que ele próprio afirma, seu propósito é justamente estabelecer uma situação tão terrível que faça com que os cidadãos de Gotham exponham seu lado corrupto e animalesco, pronto para cometer as piores atrocidades para preservarem a si mesmos. De certa forma, essa ideia se assemelha à trama do personagem em A Piada Mortal, onde ele tenta provar, através do sequestro do Comissário Gordon e do ataque a sua filha Bárbara, que basta apenas um dia realmente ruim para uma pessoa perder a cabeça.
Heath Ledger conseguiu dar nova vida ao personagem, e uma nova cara. Nada mais restou do gângster dançarino que subornava o povo e cometia excentricidades nos anos 80. Agora temos um terrível criminoso imprevisível com terríveis cicatrizes no rosto e que não se importa em assassinar o maior número de pessoas inocentes para estabelecer seu caos. Até a origem do personagem foi alterada, deixando de lado a queda no tanque de químicos. No entanto, esse novo Coringa não tem uma origem bem definida, apesar de muitos terem aderido à teoria de que ele é um veterano cujo comboio foi atacado e explodido. E esse mistério é parte da personalidade dada por Ledger, exemplificada nas várias histórias diferentes que ele conta sobre a origem de suas cicatrizes.
Com toda essa construção em cima dele, o Coringa se tornou um personagem bem afastado de seu exemplo dos quadrinhos e mais associado a uma possível realidade. Sem dúvida nenhuma, é um personagem completamente diferente do interpretado por Jack Nicholson, e já não carrega mais os traços fantásticos e exagerados que o antigo possuía, embora sua aura de mistério o tornem um personagem ainda não completamente inserido na completa realidade de seu público.
JARED LETO: UMA REPRESENTAÇÃO QUE NÃO RENDEU

Apesar de muitos preferirem esquecer Esquadrão Suicida, ainda assim esse é um filme que surge em muitas discussões sobre os universos de heróis nos cinemas, na maioria dos casos para ser mal falado. E entre todas as críticas que existem contra esse filme, uma boa parte delas se volta contra a interpretação do Coringa feita por Jared Leto.
Até onde se pode dizer, o Coringa de Leto parece retornar à origem dos quadrinhos, com uma clara referência sendo feita ao tanque de produtos químicos durante a origem da Arlequina. Apesar disso, é óbvia a tentativa de torná-lo mais sério do que a interpretação de Nicholson, justamente para se adaptar a um novo tipo de filme. Contudo, A interpretação de Leto falha em vários pontos, e um deles é justamente transformar o personagem em alguém realmente intimidador e a ser levado a sério. Os trailers até tentaram fazer um bom trabalho nesse aspecto, colocando o Coringa como uma figura ameaçadora durante o filme, mas suas aparições no longa fizeram pouco para ajudá-lo a se consagrar como uma boa versão do personagem.
Analisando bem, Jared Leto não está tão pior do que a maioria dos outros personagens do filme, mas por interpretar um personagem tão aclamado pelos fãs, seus erros talvez tenham sido mais sentidos por aqueles que assistiram. No final, nota-se uma tentativa da DC Comics de estabelecer um universo para seus heróis que busque amparo em uma interpretação mais realista, mas o Coringa de Leto simplesmente não foi um personagem bom o bastante para ser levado tão a sério quanto o estúdio gostaria que fosse. Mas, também, nada naquele filme foi levado a sério.
JOAQUIM PHOENIX: A ORIGEM DO VILÃO ASSOCIADA À SOCIEDADE

Joaquim Phoenix é o mais novo ator a interpretar o lendário vilão da DC, em uma adaptação que foge das convenções do mundo dos quadrinhos, especialmente por introduzir o Coringa sem a necessidade de apresentar o Batman também. Pela primeira vez, o vilão tem um filme solo totalmente dedicado a ele e à sua transformação no palhaço do crime.
Contudo, não haverá dessa vez um tanque cheio de químicos ou uma explosão de um caminhão militar ou uma origem completamente misteriosa. Ao que tudo indica, o Coringa de Phoenix será fruto do tratamento hostil da própria sociedade para com ele. Fruto da pobreza, das dificuldades para manter a vida, de uma família desbalanceada, de ataques feitos pelas pessoas, de críticas completamente destrutivas de seu trabalho, da violência contínua, tanto física quanto psicológica. Uma aproximação nada convencional para o personagem e que não foi vista nem nos tempos de Christopher Nolan.
O filme Coringa, de Todd Phillips, é uma leitura ousada do personagem icônico, trazendo para as telas a versão mais ligada à realidade possível, oferecendo uma origem que, não apenas é muito real, mas também é completamente plausível quando fazemos uma análise maior dos dias atuais, percebendo que a violência do dia-a-dia é colocada em choque com uma política de acreditar que tudo vai dar certo ("Ponha um sorriso nesse rosto"). O palhaço do crime é, pela primeira vez, não um gângster ou membro da máfia e muito menos um misterioso agente do caos, mas alguém que sofreu tanto nas mãos de uma sociedade corrupta e cheia de ódio que se tornou louco e psicopata da mesma maneira que aqueles que o fizeram mal.
O PERIGOSO MERGULHO NA "REALIDADE"
Coringa já se tornou um filme extremamente reconhecido, embora mal tenha estreado direito. A conquista do Leão de Ouro durante o Festival de Veneza e uma enxurrada de críticas positivas mostram que o público e os críticos já aprenderam a apreciar essa tomada mais séria e sombria da origem do personagem.

Contudo, o filme também atraiu algumas críticas negativas, com a maioria delas demonstrando imensa preocupação com a violência demonstrada no filme e com a influência que essas cenas poderiam ter para com o público. Vários pedidos foram feitos à Warner Bros., lembrando do atentado a um cinema ocorrido durante uma sessão de Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge em 2012, e também foram feitas várias alegações de que Coringa faria referência e estimularia o comportamento do grupo Incel (Involuntary Celibatary), grupo extremamente machista e misógino de homens que colocam toda a culpa de eles não conseguirem um relacionamento nas mulheres.
É interessante que um filme estabeleça uma conexão tão visceral com o mundo real no qual está inserido, e é especialmente benéfico para o longa se sua trama contém comentários sociais ou políticos sobre a maneira como estamos vivendo. Mas esse é um terreno por onde se deve andar com cuidado, porque dependendo de como tais assuntos são tratados, o incentivo à violência pode andar junto com a crítica à mesma e ser bem mais aparente que essa segunda. Retratar algo que se assemelhe à realidade não é algo ruim, mas é preciso responsabilidade para que esse retrato não vire um incentivo para ações terríveis.