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Análise & Opinião

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Davy Jones: muito além dos efeitos visuais

4/6/2022

Portando um visual de efeitos visuais único e marcante, Davy Jones é um vilão extremamente complexo, seja pela mitologia por trás dele, por seu passado sombrio e por sua relação com os protagonistas, que o levam muito além do que uma simples criatura CGI.

escrito por
Luis Henrique Franco

Portando um visual de efeitos visuais único e marcante, Davy Jones é um vilão extremamente complexo, seja pela mitologia por trás dele, por seu passado sombrio e por sua relação com os protagonistas, que o levam muito além do que uma simples criatura CGI.

escrito por
Luis Henrique Franco
4/6/2022

Piratas do Caribe é uma franquia que consolidou uma maneira única de tratar personagens criados com a ajuda de efeitos visuais, produzindo piratas zumbis, monstros marinhos e tripulações fantasma que se tornaram símbolos de seus filmes e consagraram inúmeros personagens que uniram esse visual singular com uma complexidade intensa de suas personalidades, emoções e motivações. De todos esses magníficos personagens, um se destaca entre os demais: Davy Jones: o capitão amaldiçoado do Holandês Voador com o marcante rosto de um polvo e garras de caranguejo no lugar das mãos.

De mitologias reais às histórias dentro do filme, Davy Jones criou uma relação forte com todos os protagonistas da franquia e se tornou uma das peças fundamentais da saga dos Piratas. Nesse texto, relembraremos os diversos motivos que tornaram esse personagem tão marcante e estudaremos a maneira com a sua construção refletiu a saga de outros personagens e influenciou sua evolução ao longo dos filmes.

A SURPREENDENTE SUPERFÍCIE

Já se tornou exaustivo nos dias de hoje a presença de personagens completamente criados por efeitos especiais nos filmes. Quanto mais o tempo passa e a tecnologia avança, mais as produções parecem querem enfiar essas criações visuais em suas narrativas, o que poderia ser interessante se os efeitos por trás desses personagens fossem sempre bem trabalhados e extremamente realistas. Contudo, devido à pressa que muitos estúdios têm para lançar seus projetos e à necessidade de incluir um número cada vez maior de efeitos visuais em cada cena, muitos desses personagens parecem plásticos e falsos. Ironicamente, quando olhamos para um filme como Piratas do Caribe, já com quase vinte anos de existência, vemos um exemplo de um bom uso de um personagem completamente feito de CGI.

Antes e depois, mostrando o ator Bill Nighy em cena e a sua transformação em Davy Jones com o uso de efeitos visuais.

Uma boa parte dessa razão vem de como Jones é trabalhado como um personagem real, e não apenas como uma casca de CGI. Suas motivações internas são tocantes e surpreendentes, mas o seu visual também não deixa a desejar. Isso porque Davy Jones possui uma caracterização única, que por si só já se destaca em meio aos demais personagens do filme e faz com que prestemos atenção à sua presença. Usando da técnica de motion capture, o filme manteve o ator Bill Nighy em cena, contracenando com o resto de elenco e, só depois que as filmagens estavam prontas, a equipe de efeitos iniciou o processo de construir o personagem por cima da atuação de Nighy, acrescentando um rosto de polvo, com tentáculos que se movem por conta própria e uma pele mucosa e gosmenta, além de roupas cobertas por algas e cracas e uma garra de caranguejo no lugar de um braço.

É sempre necessário olhar os personagens para além da sua aparência física, mas a superfície de Jones já é por demais convidativa. Tornando-o único e singular, mesmo entre os demais membros de sua tripulação amaldiçoada, o filme destaca o personagem de forma a dizer ao público que existe mais a respeito dele para se conhecer. É a superfície rasa convidando para o interior profundo. Isso é um trabalho que não pode ser apressado, e é triste ver os filmes de hoje criando personagens de CGI às pressas e não lhes dando profundidade alguma, quando uma das primeiras tentativas bem sucedidas de fazer uso desses efeitos mostrou o quão importante esse trabalho mais detalhado é.

"HOLANDÊS VOADOR": O TERRÍVEL MITO DOS MARES

Como muitos outros aspectos da franquia, Davy Jones e seu navio, "O Holandês Voador", fazem parte de um conjunto de lendas que circulavam pelos mares na época das grandes navegações e da exploração marítima do mundo. O navio, em especial, foi referenciado em inúmeras lendas, peças, óperas e produções que pegaram sua trágica história como inspiração.

Pintura mostrando o Holandês Voador, temido navio que inspirou lendas marinhas diversas. / TEMPLE DIX, Charles. The Flying Dutchman. 1860s. Pintura, óleo sobre tela.
TEMPLE DIX, Charles. The Flying Dutchman. 1860s. Pintura, óleo sobre tela.

Os primeiros relatos e mitos do Holandês Voador falam de um navio que zarpou de Amsterdam em direção ao Cabo da Boa Esperança, na época um passagem temível por todos os marinheiros. Atingido por uma tempestade, o capitão do navio desafiou a natureza e seguiu em frente em sua tentativa de cruzar o cabo, sendo por isso amaldiçoado. Depois desse ocorrido, o Holandês se tornou um navio fantasma, condenado a vagar pelos mares, atraindo outras embarcações para sofrerem o mesmo fim.

O último aspecto da lenda foi mantido, de certa forma, pelos filmes. Davy Jones, comandante do Holandês Voador na franquia Piratas do Caribe, recebeu a incumbência de guiar as almas perdidas nos mares para o além-vida, mas distorceu essa missão e agora caça embarcações pelos mares, levando-as ao naufrágio. Como uma das lendas mais famosas dos mares, é esperado que a história fosse empregada em uma franquia que introduz, de forma, fantástica, tantas lendas marítimas diferentes.

A história do filme, no entanto, também referencia a narrativa da famosa ópera de Wagner, que relata a crônica de um capitão que, após blasfemar e insultar Deus, é condenado a vagar perdido pelos mares, sem nunca encontrar sua pátria novamente. Um dia, o capitão atraca ao lado de um comerciante e oferece grande quantidade de ouro em troca da mão de sua filha, que lhe jura eterna fidelidade. Mas após o capitão ver a moça abraçada a outro homem, ele parte de coração partido, voltando a singrar os mares para sempre e deixando para trás a moça apaixonada.

Mesmo que não adaptem totalmente essas histórias, os filmes conseguem enriquecer muito a sua história e seus personagens ao beberem da cultura, da tradição e dos mitos já existentes nas diferentes sociedades.

O QUE PERTURBA TODOS OS HOMENS...

Tendo abordado a construção do personagem e a lenda que o criou, chegamos ao primeiro ponto sobre as motivações internas de Davy Jones: sua história e o motivo de sua maldição. Tendo se apaixonado pela deusa dos mares, Calipso, Jones lhe prestou um juramento sagrado de velejar por dez anos seguidos sem nunca aportar, enquanto guiava as almas perdidas nos mares para seu lugar de descanso. Por seus serviços, ele seria recompensado com um dia em terra para ver a sua amada.

Ao toque de Calypso, Davy Jones retorna brevemente à sua forma humana.

Parece um trato um tanto injusto: vender a sua alma para servir por dez anos, tendo após isso apenas um dia de descanso e prazer. E se torna ainda pior quando descobrimos que, após sua década de serviço, Jones finalmente aporta, apenas para descobrir que Calipso não estava esperando por ele. A ideia de se dedicar por tanto tempo a um serviço custoso, apenas para ter a sua felicidade, o único pensamento feliz que o moveu por todos aqueles anos, negado, com certeza deve ter provocado a fúria do capitão, que amaldiçoou a si mesmo naquele dia, arrancando seu coração e velejando como uma ameaça fantasma pelos mares, aprisionando as almas dos marinheiros para servirem como a sua própria tripulação maldita.

Existe uma temática nos primeiros filmes de Piratas do Caribe que, apesar de não ser seu tema principal, é bastante presente e afeta inúmeros personagens: a forma como homens são afetados pela presença de uma mulher. Jack, Will e Norrington mudam completamente quando confrontados por Elizabeth; em O Baú da Morte, uma tripulação mercantil entra em polvorosa pela descoberta de um vestido à bordo, que eles acreditam pertencer a um espírito; E muitos personagens, incluindo Gibbs, comentam sobre como é "má sorte" ter uma mulher à bordo. É um tema debatível e questionável, e muitas vezes usado mais para um propósito cômico, mas que continua ali, presente em todos os filmes.

No caso de Davy Jones, porém, essa perturbação causada por uma mulher (ou por uma paixão, podemos dizer), é levada muito a sério para a construção do personagem. Porque é o amor de Jones por Calipso que o leva a se empenhar em uma tarefa tão ingrata, e é esse mesmo amor, agora não correspondido na visão dele, que o leva a se amaldiçoar de tal maneira como uma forma de vingança. Ao se perder e se tornar um fantasma imortal, Jones corrompe o seu propósito e deixa de guiar os mortos para seu local de descanso, povoando o mar, a casa de sua amada, com centenas de almas condenadas.

Mais do que o motivo principal de sua construção, esse amor não correspondido que se torna fruto de um ódio imenso é essencial para o arco de Jones através dos filmes, pois se trata de um sentimento que, por mais que ele tente suprimir e destruir, está sempre presente com ele e é a peça central para a forma como outros personagens podem explorá-lo e até manipulá-lo.

O CORAÇÃO LACRADO

E nesse ponto chegamos a outro aspecto marcante do personagem nos filmes: o coração arrancado e selado em um baú. Toda a trama do segundo filme reside na busca desesperada por encontrar esse coração, que representa a única fraqueza de Jones a única forma pela qual ele pode ser morto. Assim sendo, quem detiver o coração controla Jones e a tripulação do Holandês Voador.

O coração de Davy Jones, escondido dentro do Baú da Morte

É uma ironia respeitável quando um filme consegue, de maneira natural e correta, dar a um personagem tão poderoso uma fraqueza tão exposta. E, no caso de Jones, essa exposição revela a maneira como ele nunca consegue, de fato, se livrar de seus sentimentos. Eles são a sua principal fragilidade e ele sabe disso, visto que foi através de sua paixão que ele se amaldiçoou. Através desse reconhecimento, Jones tenta se fechar e colocar toda a sua vulnerabilidade em um baú lacrado e escondido para sempre. E, ironicamente, foi essa tentativa de selar de vez suas fragilidades que o tornaram ainda mais exposto a elas.

Ao não manter o seu ponto fraco consigo durante todo o tempo, Jones permitiu que outros o encontrassem e o manipulassem como desejassem. Mais do que apenas ser o ponto onde qualquer um pode apunhalá-lo e matá-lo, o coração representa todo o sofrimento interno de Jones sendo revelado ao mundo. E é nesse ponto que se mostra a principal diferença entre o Davy Jones de O Baú da Morte e em No Fim do Mundo. No segundo filme da saga, Jones é abertamente cruel e parece não ter remorsos, tocando seu órgão maligno com raiva e ódio que o tornam ainda mais intimidador. Já no terceiro, vemos um capitão mais acuado, lutando para manter sua liberdade diante da Companhia das Índias que controla seu coração e o ameaça abertamente, incapaz de manter o controle sobre seu navio e sendo desafiado diante da sua própria tripulação.

No terceiro filme, também vemos um personagem mais aberto para nós, não por vontade própria, mas porque sua fraqueza é controlada por outros, o que o leva a revelar muito mais sobre sua própria história, sua relação com Calipso e sobre todos os sentimentos que ele desejava guardar para sempre. A complexidade de Jones como personagem chega até nós não pelas ações do personagem, mas pelo que lhe é infligido por outros. E é interessante que isso acontece por essa exposição de suas vulnerabilidades, mas essas só se tornam a fraqueza do personagem por causa da sua decisão de escondê-las e tentar torná-las algo estranho a si.

JONES E TURNER: DOIS CAMINHOS QUE SE REFLETEM

Por conta de tudo isso, os filmes constroem uma relação extremamente interessante entre Davy Jones e Will Turner, um dos protagonistas do filme. Piratas do Caribe se torna uma franquia especial pela maneira como mantém o protagonismo principal em Jack Sparrow, mas praticamente toda a história dos três primeiros filmes tem como personagens centrais de sua trama o casal Will e Elizabeth. Assim sendo, é natural que um vilão que é apresentado como uma ameaça inicial a Jack acabe desenvolvendo sua relação mais forte com Will.

Will Turner assume a capitania do Holandês Voador.

E o motivo de porque tal relação é tão especial é porque Will e Jones não são personagens opostos, mas sim extremamente idênticos em suas jornadas, exceto pela forma como eles as terminam. Ambos possuem como motivação inicial o amor que sentem por uma mulher, o que os leva a se dedicar a uma missão insana: para Jones, a condução das almas perdidas; para Will, a dedicação à atividade pirata. Por causa dessas missões, ambos são afastados de suas amadas, seja pela própria missão ou por forças externas, mas fazem de tudo para retornar a ela.

O resultado desse retorno é o ponto inicial onde os dois se diferem. Will conseguiu reencontrar Elizabeth no final, e teve seu serviço recompensado pelo amor dela, enquanto Jones foi deixado sozinho e amaldiçoado. Essa semelhança e, ao mesmo tempo, enorme diferença, é o que une os dois personagens de maneira tão forte, colocando um contra o outro em um duelo que determina a libertação ou não de uma maldição. Jones se torna o teste definitivo de Will pois representa o que ele poderia ter se tornado.

E na própria saga vemos como Will poderia ter trilhado um caminho diferente e acabado como Jones. A passagem entre os filmes O Baú da Morte e No Fim do Mundo mostram uma perturbação séria no relacionamento de Will e Elizabeth, inicialmente quando a vontade de Will de salvar o seu pai o coloca em tamanho conflito com Jones que o torna quase cego para Elizabeth. Por outro ponto de vista, os filmes estabelecem uma séria dificuldade dos dois de se explicarem e se comunicarem, levando a profundos desentendimentos que acabam sendo guardados e reprimidos, da mesma forma como Jones reprimiu seus sentimentos e os trancou em um baú. Não à toa, o próprio Will reconhece no terceiro filme como têm se afastado de Elizabeth à ponto de quase perdê-la.

Davy Jones serve como um espelho do que Will pode se tornar. Ele mostra o resultado do caminho que o jovem está trilhando, e é por sua causa que Will muda seu destino, reaproximando-se de Elizabeth, mesmo no momento em que se torna o capitão do Holandês Voador e coloca seu coração no mesmo baú de Davy Jones. Ao contrário dele, no entanto, Will não enterra o baú e suas emoções em um lugar para que ninguém o encontre, mas o entrega à mulher que ele ama, dando seu amor e paixão em suas mãos e livrando-se assim de ser despedaçado pela maldição do Holandês Voador.

A complexidade de Davy Jones se fundamenta não só em suas próprias características, mas também em como essas características ecoam, influenciam e afetam as demais personagens do filme. Pela forma como consegue marcar sua presença nos filmes e influenciar as tramas particulares de tantos personagens, Jones se tornou um exemplo de um personagem extremamente bem construído, que ultrapassa a sua pele de efeitos visuais e se torna mais real do que qualquer outra pessoa nos filmes.

Davy Jones encarando fundo a sua alma...
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Direção: 
Criação:
Roteirista 1
Roteirista 2
Roteirista 3
Diretor 1
Diretor 2
Diretor 3
Elenco Principal:
Ator 1
Ator 2
Ator 3
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Portando um visual de efeitos visuais único e marcante, Davy Jones é um vilão extremamente complexo, seja pela mitologia por trás dele, por seu passado sombrio e por sua relação com os protagonistas, que o levam muito além do que uma simples criatura CGI.

crítica por
Luis Henrique Franco
4/6/2022

Piratas do Caribe é uma franquia que consolidou uma maneira única de tratar personagens criados com a ajuda de efeitos visuais, produzindo piratas zumbis, monstros marinhos e tripulações fantasma que se tornaram símbolos de seus filmes e consagraram inúmeros personagens que uniram esse visual singular com uma complexidade intensa de suas personalidades, emoções e motivações. De todos esses magníficos personagens, um se destaca entre os demais: Davy Jones: o capitão amaldiçoado do Holandês Voador com o marcante rosto de um polvo e garras de caranguejo no lugar das mãos.

De mitologias reais às histórias dentro do filme, Davy Jones criou uma relação forte com todos os protagonistas da franquia e se tornou uma das peças fundamentais da saga dos Piratas. Nesse texto, relembraremos os diversos motivos que tornaram esse personagem tão marcante e estudaremos a maneira com a sua construção refletiu a saga de outros personagens e influenciou sua evolução ao longo dos filmes.

A SURPREENDENTE SUPERFÍCIE

Já se tornou exaustivo nos dias de hoje a presença de personagens completamente criados por efeitos especiais nos filmes. Quanto mais o tempo passa e a tecnologia avança, mais as produções parecem querem enfiar essas criações visuais em suas narrativas, o que poderia ser interessante se os efeitos por trás desses personagens fossem sempre bem trabalhados e extremamente realistas. Contudo, devido à pressa que muitos estúdios têm para lançar seus projetos e à necessidade de incluir um número cada vez maior de efeitos visuais em cada cena, muitos desses personagens parecem plásticos e falsos. Ironicamente, quando olhamos para um filme como Piratas do Caribe, já com quase vinte anos de existência, vemos um exemplo de um bom uso de um personagem completamente feito de CGI.

Antes e depois, mostrando o ator Bill Nighy em cena e a sua transformação em Davy Jones com o uso de efeitos visuais.

Uma boa parte dessa razão vem de como Jones é trabalhado como um personagem real, e não apenas como uma casca de CGI. Suas motivações internas são tocantes e surpreendentes, mas o seu visual também não deixa a desejar. Isso porque Davy Jones possui uma caracterização única, que por si só já se destaca em meio aos demais personagens do filme e faz com que prestemos atenção à sua presença. Usando da técnica de motion capture, o filme manteve o ator Bill Nighy em cena, contracenando com o resto de elenco e, só depois que as filmagens estavam prontas, a equipe de efeitos iniciou o processo de construir o personagem por cima da atuação de Nighy, acrescentando um rosto de polvo, com tentáculos que se movem por conta própria e uma pele mucosa e gosmenta, além de roupas cobertas por algas e cracas e uma garra de caranguejo no lugar de um braço.

É sempre necessário olhar os personagens para além da sua aparência física, mas a superfície de Jones já é por demais convidativa. Tornando-o único e singular, mesmo entre os demais membros de sua tripulação amaldiçoada, o filme destaca o personagem de forma a dizer ao público que existe mais a respeito dele para se conhecer. É a superfície rasa convidando para o interior profundo. Isso é um trabalho que não pode ser apressado, e é triste ver os filmes de hoje criando personagens de CGI às pressas e não lhes dando profundidade alguma, quando uma das primeiras tentativas bem sucedidas de fazer uso desses efeitos mostrou o quão importante esse trabalho mais detalhado é.

"HOLANDÊS VOADOR": O TERRÍVEL MITO DOS MARES

Como muitos outros aspectos da franquia, Davy Jones e seu navio, "O Holandês Voador", fazem parte de um conjunto de lendas que circulavam pelos mares na época das grandes navegações e da exploração marítima do mundo. O navio, em especial, foi referenciado em inúmeras lendas, peças, óperas e produções que pegaram sua trágica história como inspiração.

Pintura mostrando o Holandês Voador, temido navio que inspirou lendas marinhas diversas. / TEMPLE DIX, Charles. The Flying Dutchman. 1860s. Pintura, óleo sobre tela.
TEMPLE DIX, Charles. The Flying Dutchman. 1860s. Pintura, óleo sobre tela.

Os primeiros relatos e mitos do Holandês Voador falam de um navio que zarpou de Amsterdam em direção ao Cabo da Boa Esperança, na época um passagem temível por todos os marinheiros. Atingido por uma tempestade, o capitão do navio desafiou a natureza e seguiu em frente em sua tentativa de cruzar o cabo, sendo por isso amaldiçoado. Depois desse ocorrido, o Holandês se tornou um navio fantasma, condenado a vagar pelos mares, atraindo outras embarcações para sofrerem o mesmo fim.

O último aspecto da lenda foi mantido, de certa forma, pelos filmes. Davy Jones, comandante do Holandês Voador na franquia Piratas do Caribe, recebeu a incumbência de guiar as almas perdidas nos mares para o além-vida, mas distorceu essa missão e agora caça embarcações pelos mares, levando-as ao naufrágio. Como uma das lendas mais famosas dos mares, é esperado que a história fosse empregada em uma franquia que introduz, de forma, fantástica, tantas lendas marítimas diferentes.

A história do filme, no entanto, também referencia a narrativa da famosa ópera de Wagner, que relata a crônica de um capitão que, após blasfemar e insultar Deus, é condenado a vagar perdido pelos mares, sem nunca encontrar sua pátria novamente. Um dia, o capitão atraca ao lado de um comerciante e oferece grande quantidade de ouro em troca da mão de sua filha, que lhe jura eterna fidelidade. Mas após o capitão ver a moça abraçada a outro homem, ele parte de coração partido, voltando a singrar os mares para sempre e deixando para trás a moça apaixonada.

Mesmo que não adaptem totalmente essas histórias, os filmes conseguem enriquecer muito a sua história e seus personagens ao beberem da cultura, da tradição e dos mitos já existentes nas diferentes sociedades.

O QUE PERTURBA TODOS OS HOMENS...

Tendo abordado a construção do personagem e a lenda que o criou, chegamos ao primeiro ponto sobre as motivações internas de Davy Jones: sua história e o motivo de sua maldição. Tendo se apaixonado pela deusa dos mares, Calipso, Jones lhe prestou um juramento sagrado de velejar por dez anos seguidos sem nunca aportar, enquanto guiava as almas perdidas nos mares para seu lugar de descanso. Por seus serviços, ele seria recompensado com um dia em terra para ver a sua amada.

Ao toque de Calypso, Davy Jones retorna brevemente à sua forma humana.

Parece um trato um tanto injusto: vender a sua alma para servir por dez anos, tendo após isso apenas um dia de descanso e prazer. E se torna ainda pior quando descobrimos que, após sua década de serviço, Jones finalmente aporta, apenas para descobrir que Calipso não estava esperando por ele. A ideia de se dedicar por tanto tempo a um serviço custoso, apenas para ter a sua felicidade, o único pensamento feliz que o moveu por todos aqueles anos, negado, com certeza deve ter provocado a fúria do capitão, que amaldiçoou a si mesmo naquele dia, arrancando seu coração e velejando como uma ameaça fantasma pelos mares, aprisionando as almas dos marinheiros para servirem como a sua própria tripulação maldita.

Existe uma temática nos primeiros filmes de Piratas do Caribe que, apesar de não ser seu tema principal, é bastante presente e afeta inúmeros personagens: a forma como homens são afetados pela presença de uma mulher. Jack, Will e Norrington mudam completamente quando confrontados por Elizabeth; em O Baú da Morte, uma tripulação mercantil entra em polvorosa pela descoberta de um vestido à bordo, que eles acreditam pertencer a um espírito; E muitos personagens, incluindo Gibbs, comentam sobre como é "má sorte" ter uma mulher à bordo. É um tema debatível e questionável, e muitas vezes usado mais para um propósito cômico, mas que continua ali, presente em todos os filmes.

No caso de Davy Jones, porém, essa perturbação causada por uma mulher (ou por uma paixão, podemos dizer), é levada muito a sério para a construção do personagem. Porque é o amor de Jones por Calipso que o leva a se empenhar em uma tarefa tão ingrata, e é esse mesmo amor, agora não correspondido na visão dele, que o leva a se amaldiçoar de tal maneira como uma forma de vingança. Ao se perder e se tornar um fantasma imortal, Jones corrompe o seu propósito e deixa de guiar os mortos para seu local de descanso, povoando o mar, a casa de sua amada, com centenas de almas condenadas.

Mais do que o motivo principal de sua construção, esse amor não correspondido que se torna fruto de um ódio imenso é essencial para o arco de Jones através dos filmes, pois se trata de um sentimento que, por mais que ele tente suprimir e destruir, está sempre presente com ele e é a peça central para a forma como outros personagens podem explorá-lo e até manipulá-lo.

O CORAÇÃO LACRADO

E nesse ponto chegamos a outro aspecto marcante do personagem nos filmes: o coração arrancado e selado em um baú. Toda a trama do segundo filme reside na busca desesperada por encontrar esse coração, que representa a única fraqueza de Jones a única forma pela qual ele pode ser morto. Assim sendo, quem detiver o coração controla Jones e a tripulação do Holandês Voador.

O coração de Davy Jones, escondido dentro do Baú da Morte

É uma ironia respeitável quando um filme consegue, de maneira natural e correta, dar a um personagem tão poderoso uma fraqueza tão exposta. E, no caso de Jones, essa exposição revela a maneira como ele nunca consegue, de fato, se livrar de seus sentimentos. Eles são a sua principal fragilidade e ele sabe disso, visto que foi através de sua paixão que ele se amaldiçoou. Através desse reconhecimento, Jones tenta se fechar e colocar toda a sua vulnerabilidade em um baú lacrado e escondido para sempre. E, ironicamente, foi essa tentativa de selar de vez suas fragilidades que o tornaram ainda mais exposto a elas.

Ao não manter o seu ponto fraco consigo durante todo o tempo, Jones permitiu que outros o encontrassem e o manipulassem como desejassem. Mais do que apenas ser o ponto onde qualquer um pode apunhalá-lo e matá-lo, o coração representa todo o sofrimento interno de Jones sendo revelado ao mundo. E é nesse ponto que se mostra a principal diferença entre o Davy Jones de O Baú da Morte e em No Fim do Mundo. No segundo filme da saga, Jones é abertamente cruel e parece não ter remorsos, tocando seu órgão maligno com raiva e ódio que o tornam ainda mais intimidador. Já no terceiro, vemos um capitão mais acuado, lutando para manter sua liberdade diante da Companhia das Índias que controla seu coração e o ameaça abertamente, incapaz de manter o controle sobre seu navio e sendo desafiado diante da sua própria tripulação.

No terceiro filme, também vemos um personagem mais aberto para nós, não por vontade própria, mas porque sua fraqueza é controlada por outros, o que o leva a revelar muito mais sobre sua própria história, sua relação com Calipso e sobre todos os sentimentos que ele desejava guardar para sempre. A complexidade de Jones como personagem chega até nós não pelas ações do personagem, mas pelo que lhe é infligido por outros. E é interessante que isso acontece por essa exposição de suas vulnerabilidades, mas essas só se tornam a fraqueza do personagem por causa da sua decisão de escondê-las e tentar torná-las algo estranho a si.

JONES E TURNER: DOIS CAMINHOS QUE SE REFLETEM

Por conta de tudo isso, os filmes constroem uma relação extremamente interessante entre Davy Jones e Will Turner, um dos protagonistas do filme. Piratas do Caribe se torna uma franquia especial pela maneira como mantém o protagonismo principal em Jack Sparrow, mas praticamente toda a história dos três primeiros filmes tem como personagens centrais de sua trama o casal Will e Elizabeth. Assim sendo, é natural que um vilão que é apresentado como uma ameaça inicial a Jack acabe desenvolvendo sua relação mais forte com Will.

Will Turner assume a capitania do Holandês Voador.

E o motivo de porque tal relação é tão especial é porque Will e Jones não são personagens opostos, mas sim extremamente idênticos em suas jornadas, exceto pela forma como eles as terminam. Ambos possuem como motivação inicial o amor que sentem por uma mulher, o que os leva a se dedicar a uma missão insana: para Jones, a condução das almas perdidas; para Will, a dedicação à atividade pirata. Por causa dessas missões, ambos são afastados de suas amadas, seja pela própria missão ou por forças externas, mas fazem de tudo para retornar a ela.

O resultado desse retorno é o ponto inicial onde os dois se diferem. Will conseguiu reencontrar Elizabeth no final, e teve seu serviço recompensado pelo amor dela, enquanto Jones foi deixado sozinho e amaldiçoado. Essa semelhança e, ao mesmo tempo, enorme diferença, é o que une os dois personagens de maneira tão forte, colocando um contra o outro em um duelo que determina a libertação ou não de uma maldição. Jones se torna o teste definitivo de Will pois representa o que ele poderia ter se tornado.

E na própria saga vemos como Will poderia ter trilhado um caminho diferente e acabado como Jones. A passagem entre os filmes O Baú da Morte e No Fim do Mundo mostram uma perturbação séria no relacionamento de Will e Elizabeth, inicialmente quando a vontade de Will de salvar o seu pai o coloca em tamanho conflito com Jones que o torna quase cego para Elizabeth. Por outro ponto de vista, os filmes estabelecem uma séria dificuldade dos dois de se explicarem e se comunicarem, levando a profundos desentendimentos que acabam sendo guardados e reprimidos, da mesma forma como Jones reprimiu seus sentimentos e os trancou em um baú. Não à toa, o próprio Will reconhece no terceiro filme como têm se afastado de Elizabeth à ponto de quase perdê-la.

Davy Jones serve como um espelho do que Will pode se tornar. Ele mostra o resultado do caminho que o jovem está trilhando, e é por sua causa que Will muda seu destino, reaproximando-se de Elizabeth, mesmo no momento em que se torna o capitão do Holandês Voador e coloca seu coração no mesmo baú de Davy Jones. Ao contrário dele, no entanto, Will não enterra o baú e suas emoções em um lugar para que ninguém o encontre, mas o entrega à mulher que ele ama, dando seu amor e paixão em suas mãos e livrando-se assim de ser despedaçado pela maldição do Holandês Voador.

A complexidade de Davy Jones se fundamenta não só em suas próprias características, mas também em como essas características ecoam, influenciam e afetam as demais personagens do filme. Pela forma como consegue marcar sua presença nos filmes e influenciar as tramas particulares de tantos personagens, Jones se tornou um exemplo de um personagem extremamente bem construído, que ultrapassa a sua pele de efeitos visuais e se torna mais real do que qualquer outra pessoa nos filmes.

Davy Jones encarando fundo a sua alma...

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Portando um visual de efeitos visuais único e marcante, Davy Jones é um vilão extremamente complexo, seja pela mitologia por trás dele, por seu passado sombrio e por sua relação com os protagonistas, que o levam muito além do que uma simples criatura CGI.

escrito por
Luis Henrique Franco
4/6/2022
nascimento

Portando um visual de efeitos visuais único e marcante, Davy Jones é um vilão extremamente complexo, seja pela mitologia por trás dele, por seu passado sombrio e por sua relação com os protagonistas, que o levam muito além do que uma simples criatura CGI.

escrito por
Luis Henrique Franco
4/6/2022

Piratas do Caribe é uma franquia que consolidou uma maneira única de tratar personagens criados com a ajuda de efeitos visuais, produzindo piratas zumbis, monstros marinhos e tripulações fantasma que se tornaram símbolos de seus filmes e consagraram inúmeros personagens que uniram esse visual singular com uma complexidade intensa de suas personalidades, emoções e motivações. De todos esses magníficos personagens, um se destaca entre os demais: Davy Jones: o capitão amaldiçoado do Holandês Voador com o marcante rosto de um polvo e garras de caranguejo no lugar das mãos.

De mitologias reais às histórias dentro do filme, Davy Jones criou uma relação forte com todos os protagonistas da franquia e se tornou uma das peças fundamentais da saga dos Piratas. Nesse texto, relembraremos os diversos motivos que tornaram esse personagem tão marcante e estudaremos a maneira com a sua construção refletiu a saga de outros personagens e influenciou sua evolução ao longo dos filmes.

A SURPREENDENTE SUPERFÍCIE

Já se tornou exaustivo nos dias de hoje a presença de personagens completamente criados por efeitos especiais nos filmes. Quanto mais o tempo passa e a tecnologia avança, mais as produções parecem querem enfiar essas criações visuais em suas narrativas, o que poderia ser interessante se os efeitos por trás desses personagens fossem sempre bem trabalhados e extremamente realistas. Contudo, devido à pressa que muitos estúdios têm para lançar seus projetos e à necessidade de incluir um número cada vez maior de efeitos visuais em cada cena, muitos desses personagens parecem plásticos e falsos. Ironicamente, quando olhamos para um filme como Piratas do Caribe, já com quase vinte anos de existência, vemos um exemplo de um bom uso de um personagem completamente feito de CGI.

Antes e depois, mostrando o ator Bill Nighy em cena e a sua transformação em Davy Jones com o uso de efeitos visuais.

Uma boa parte dessa razão vem de como Jones é trabalhado como um personagem real, e não apenas como uma casca de CGI. Suas motivações internas são tocantes e surpreendentes, mas o seu visual também não deixa a desejar. Isso porque Davy Jones possui uma caracterização única, que por si só já se destaca em meio aos demais personagens do filme e faz com que prestemos atenção à sua presença. Usando da técnica de motion capture, o filme manteve o ator Bill Nighy em cena, contracenando com o resto de elenco e, só depois que as filmagens estavam prontas, a equipe de efeitos iniciou o processo de construir o personagem por cima da atuação de Nighy, acrescentando um rosto de polvo, com tentáculos que se movem por conta própria e uma pele mucosa e gosmenta, além de roupas cobertas por algas e cracas e uma garra de caranguejo no lugar de um braço.

É sempre necessário olhar os personagens para além da sua aparência física, mas a superfície de Jones já é por demais convidativa. Tornando-o único e singular, mesmo entre os demais membros de sua tripulação amaldiçoada, o filme destaca o personagem de forma a dizer ao público que existe mais a respeito dele para se conhecer. É a superfície rasa convidando para o interior profundo. Isso é um trabalho que não pode ser apressado, e é triste ver os filmes de hoje criando personagens de CGI às pressas e não lhes dando profundidade alguma, quando uma das primeiras tentativas bem sucedidas de fazer uso desses efeitos mostrou o quão importante esse trabalho mais detalhado é.

"HOLANDÊS VOADOR": O TERRÍVEL MITO DOS MARES

Como muitos outros aspectos da franquia, Davy Jones e seu navio, "O Holandês Voador", fazem parte de um conjunto de lendas que circulavam pelos mares na época das grandes navegações e da exploração marítima do mundo. O navio, em especial, foi referenciado em inúmeras lendas, peças, óperas e produções que pegaram sua trágica história como inspiração.

Pintura mostrando o Holandês Voador, temido navio que inspirou lendas marinhas diversas. / TEMPLE DIX, Charles. The Flying Dutchman. 1860s. Pintura, óleo sobre tela.
TEMPLE DIX, Charles. The Flying Dutchman. 1860s. Pintura, óleo sobre tela.

Os primeiros relatos e mitos do Holandês Voador falam de um navio que zarpou de Amsterdam em direção ao Cabo da Boa Esperança, na época um passagem temível por todos os marinheiros. Atingido por uma tempestade, o capitão do navio desafiou a natureza e seguiu em frente em sua tentativa de cruzar o cabo, sendo por isso amaldiçoado. Depois desse ocorrido, o Holandês se tornou um navio fantasma, condenado a vagar pelos mares, atraindo outras embarcações para sofrerem o mesmo fim.

O último aspecto da lenda foi mantido, de certa forma, pelos filmes. Davy Jones, comandante do Holandês Voador na franquia Piratas do Caribe, recebeu a incumbência de guiar as almas perdidas nos mares para o além-vida, mas distorceu essa missão e agora caça embarcações pelos mares, levando-as ao naufrágio. Como uma das lendas mais famosas dos mares, é esperado que a história fosse empregada em uma franquia que introduz, de forma, fantástica, tantas lendas marítimas diferentes.

A história do filme, no entanto, também referencia a narrativa da famosa ópera de Wagner, que relata a crônica de um capitão que, após blasfemar e insultar Deus, é condenado a vagar perdido pelos mares, sem nunca encontrar sua pátria novamente. Um dia, o capitão atraca ao lado de um comerciante e oferece grande quantidade de ouro em troca da mão de sua filha, que lhe jura eterna fidelidade. Mas após o capitão ver a moça abraçada a outro homem, ele parte de coração partido, voltando a singrar os mares para sempre e deixando para trás a moça apaixonada.

Mesmo que não adaptem totalmente essas histórias, os filmes conseguem enriquecer muito a sua história e seus personagens ao beberem da cultura, da tradição e dos mitos já existentes nas diferentes sociedades.

O QUE PERTURBA TODOS OS HOMENS...

Tendo abordado a construção do personagem e a lenda que o criou, chegamos ao primeiro ponto sobre as motivações internas de Davy Jones: sua história e o motivo de sua maldição. Tendo se apaixonado pela deusa dos mares, Calipso, Jones lhe prestou um juramento sagrado de velejar por dez anos seguidos sem nunca aportar, enquanto guiava as almas perdidas nos mares para seu lugar de descanso. Por seus serviços, ele seria recompensado com um dia em terra para ver a sua amada.

Ao toque de Calypso, Davy Jones retorna brevemente à sua forma humana.

Parece um trato um tanto injusto: vender a sua alma para servir por dez anos, tendo após isso apenas um dia de descanso e prazer. E se torna ainda pior quando descobrimos que, após sua década de serviço, Jones finalmente aporta, apenas para descobrir que Calipso não estava esperando por ele. A ideia de se dedicar por tanto tempo a um serviço custoso, apenas para ter a sua felicidade, o único pensamento feliz que o moveu por todos aqueles anos, negado, com certeza deve ter provocado a fúria do capitão, que amaldiçoou a si mesmo naquele dia, arrancando seu coração e velejando como uma ameaça fantasma pelos mares, aprisionando as almas dos marinheiros para servirem como a sua própria tripulação maldita.

Existe uma temática nos primeiros filmes de Piratas do Caribe que, apesar de não ser seu tema principal, é bastante presente e afeta inúmeros personagens: a forma como homens são afetados pela presença de uma mulher. Jack, Will e Norrington mudam completamente quando confrontados por Elizabeth; em O Baú da Morte, uma tripulação mercantil entra em polvorosa pela descoberta de um vestido à bordo, que eles acreditam pertencer a um espírito; E muitos personagens, incluindo Gibbs, comentam sobre como é "má sorte" ter uma mulher à bordo. É um tema debatível e questionável, e muitas vezes usado mais para um propósito cômico, mas que continua ali, presente em todos os filmes.

No caso de Davy Jones, porém, essa perturbação causada por uma mulher (ou por uma paixão, podemos dizer), é levada muito a sério para a construção do personagem. Porque é o amor de Jones por Calipso que o leva a se empenhar em uma tarefa tão ingrata, e é esse mesmo amor, agora não correspondido na visão dele, que o leva a se amaldiçoar de tal maneira como uma forma de vingança. Ao se perder e se tornar um fantasma imortal, Jones corrompe o seu propósito e deixa de guiar os mortos para seu local de descanso, povoando o mar, a casa de sua amada, com centenas de almas condenadas.

Mais do que o motivo principal de sua construção, esse amor não correspondido que se torna fruto de um ódio imenso é essencial para o arco de Jones através dos filmes, pois se trata de um sentimento que, por mais que ele tente suprimir e destruir, está sempre presente com ele e é a peça central para a forma como outros personagens podem explorá-lo e até manipulá-lo.

O CORAÇÃO LACRADO

E nesse ponto chegamos a outro aspecto marcante do personagem nos filmes: o coração arrancado e selado em um baú. Toda a trama do segundo filme reside na busca desesperada por encontrar esse coração, que representa a única fraqueza de Jones a única forma pela qual ele pode ser morto. Assim sendo, quem detiver o coração controla Jones e a tripulação do Holandês Voador.

O coração de Davy Jones, escondido dentro do Baú da Morte

É uma ironia respeitável quando um filme consegue, de maneira natural e correta, dar a um personagem tão poderoso uma fraqueza tão exposta. E, no caso de Jones, essa exposição revela a maneira como ele nunca consegue, de fato, se livrar de seus sentimentos. Eles são a sua principal fragilidade e ele sabe disso, visto que foi através de sua paixão que ele se amaldiçoou. Através desse reconhecimento, Jones tenta se fechar e colocar toda a sua vulnerabilidade em um baú lacrado e escondido para sempre. E, ironicamente, foi essa tentativa de selar de vez suas fragilidades que o tornaram ainda mais exposto a elas.

Ao não manter o seu ponto fraco consigo durante todo o tempo, Jones permitiu que outros o encontrassem e o manipulassem como desejassem. Mais do que apenas ser o ponto onde qualquer um pode apunhalá-lo e matá-lo, o coração representa todo o sofrimento interno de Jones sendo revelado ao mundo. E é nesse ponto que se mostra a principal diferença entre o Davy Jones de O Baú da Morte e em No Fim do Mundo. No segundo filme da saga, Jones é abertamente cruel e parece não ter remorsos, tocando seu órgão maligno com raiva e ódio que o tornam ainda mais intimidador. Já no terceiro, vemos um capitão mais acuado, lutando para manter sua liberdade diante da Companhia das Índias que controla seu coração e o ameaça abertamente, incapaz de manter o controle sobre seu navio e sendo desafiado diante da sua própria tripulação.

No terceiro filme, também vemos um personagem mais aberto para nós, não por vontade própria, mas porque sua fraqueza é controlada por outros, o que o leva a revelar muito mais sobre sua própria história, sua relação com Calipso e sobre todos os sentimentos que ele desejava guardar para sempre. A complexidade de Jones como personagem chega até nós não pelas ações do personagem, mas pelo que lhe é infligido por outros. E é interessante que isso acontece por essa exposição de suas vulnerabilidades, mas essas só se tornam a fraqueza do personagem por causa da sua decisão de escondê-las e tentar torná-las algo estranho a si.

JONES E TURNER: DOIS CAMINHOS QUE SE REFLETEM

Por conta de tudo isso, os filmes constroem uma relação extremamente interessante entre Davy Jones e Will Turner, um dos protagonistas do filme. Piratas do Caribe se torna uma franquia especial pela maneira como mantém o protagonismo principal em Jack Sparrow, mas praticamente toda a história dos três primeiros filmes tem como personagens centrais de sua trama o casal Will e Elizabeth. Assim sendo, é natural que um vilão que é apresentado como uma ameaça inicial a Jack acabe desenvolvendo sua relação mais forte com Will.

Will Turner assume a capitania do Holandês Voador.

E o motivo de porque tal relação é tão especial é porque Will e Jones não são personagens opostos, mas sim extremamente idênticos em suas jornadas, exceto pela forma como eles as terminam. Ambos possuem como motivação inicial o amor que sentem por uma mulher, o que os leva a se dedicar a uma missão insana: para Jones, a condução das almas perdidas; para Will, a dedicação à atividade pirata. Por causa dessas missões, ambos são afastados de suas amadas, seja pela própria missão ou por forças externas, mas fazem de tudo para retornar a ela.

O resultado desse retorno é o ponto inicial onde os dois se diferem. Will conseguiu reencontrar Elizabeth no final, e teve seu serviço recompensado pelo amor dela, enquanto Jones foi deixado sozinho e amaldiçoado. Essa semelhança e, ao mesmo tempo, enorme diferença, é o que une os dois personagens de maneira tão forte, colocando um contra o outro em um duelo que determina a libertação ou não de uma maldição. Jones se torna o teste definitivo de Will pois representa o que ele poderia ter se tornado.

E na própria saga vemos como Will poderia ter trilhado um caminho diferente e acabado como Jones. A passagem entre os filmes O Baú da Morte e No Fim do Mundo mostram uma perturbação séria no relacionamento de Will e Elizabeth, inicialmente quando a vontade de Will de salvar o seu pai o coloca em tamanho conflito com Jones que o torna quase cego para Elizabeth. Por outro ponto de vista, os filmes estabelecem uma séria dificuldade dos dois de se explicarem e se comunicarem, levando a profundos desentendimentos que acabam sendo guardados e reprimidos, da mesma forma como Jones reprimiu seus sentimentos e os trancou em um baú. Não à toa, o próprio Will reconhece no terceiro filme como têm se afastado de Elizabeth à ponto de quase perdê-la.

Davy Jones serve como um espelho do que Will pode se tornar. Ele mostra o resultado do caminho que o jovem está trilhando, e é por sua causa que Will muda seu destino, reaproximando-se de Elizabeth, mesmo no momento em que se torna o capitão do Holandês Voador e coloca seu coração no mesmo baú de Davy Jones. Ao contrário dele, no entanto, Will não enterra o baú e suas emoções em um lugar para que ninguém o encontre, mas o entrega à mulher que ele ama, dando seu amor e paixão em suas mãos e livrando-se assim de ser despedaçado pela maldição do Holandês Voador.

A complexidade de Davy Jones se fundamenta não só em suas próprias características, mas também em como essas características ecoam, influenciam e afetam as demais personagens do filme. Pela forma como consegue marcar sua presença nos filmes e influenciar as tramas particulares de tantos personagens, Jones se tornou um exemplo de um personagem extremamente bem construído, que ultrapassa a sua pele de efeitos visuais e se torna mais real do que qualquer outra pessoa nos filmes.

Davy Jones encarando fundo a sua alma...

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