A temática das lutas sociais é pauta de uma grande quantidade de filmes e séries, especialmente nos dias atuais, quando debates sobre os movimentos das minorias ganham cada vez mais espaço no nosso dia a dia. Várias produções já se voltaram para esse tipo de discussão, sejam os filmes biográficos e históricos que abordam um momento importante da luta por direitos, ou produções com um foco completamente social que debatem um determinado problema em pauta no momento.
Seja como for, as lutas sociais estão cada vez mais presentes no cinema, nas séries e na literatura. Na ficção científica e, mais especificamente, no subgênero das distopias, essas discussões em geral tomam formas diversas para analisar os mesmos problemas. Em geral voltadas para a ascensão de governos autoritários e o uso da tecnologia para controlar a população, são poucas as distopias que não analisam também o aspecto da divisão da sociedade em grupos específicos e coloca alguns desses grupos em uma posição de vantagem sobre os outros.

Por mais que as condições sociais dentro de universos distópicos não se diferencie muito da divisão da sociedade atualmente, é talvez o cenário atípico dessas narrativas que chame a atenção para como essa divisão é extrema. Ao mesmo tempo, essas obras conseguem refletir os valores do mundo real e forçam, de uma maneira superficial ou profunda, o pensamento sobre as atuais condições da sociedade.
O CONCEITO DE DISTOPIA
Baseado nas ideias de "Utopia" criadas por Thomas More e outros autores, o conceito de "Distopia" surge como uma análise crítica dessas sociedades utópicas. Nos textos de More, por exemplo, a utopia é uma sociedade possível a partir do momento em que os dogmas e as mistificações fossem superadas. Nesse cenário, as pessoas se guiariam pelo pensamento racional, buscando aquilo que seria melhor para a comunidade como um todo e trabalhando em conjunto com as demais pessoas para superar problemas.

Se o conceito de "utopia" caracteriza uma sociedade que atinge o equilíbrio e o progresso ao se livrar das crenças em prol do pensamento completamente racional, a "distopia" critica essa forma de ver a sociedade. Em um mundo distópico, a razão deixa de ser o guia para um mundo sem mitos e dogmas e passa a ser, ela mesma, uma forma de crença dominadora, geralmente controlada por um determinado grupo social em uma posição elevada na sociedade. Tendo surgido no final do século XIX e começo do século XX, os romances distópicos abordam um mundo dominado pela industrialização e pela tecnologia, mas que nem por isso conseguiu superar as diferenças de classes, a segregação e o abismo social entre grupos distintos. Na realidade, esses problemas se acentuaram dentro dessas sociedades.
Com o advento dos meios de comunicação, como o cinema, o rádio e, posteriormente, a televisão, os romances distópicos encontraram uma forma perfeita de dominação para impor sobre suas sociedades. Aquilo que um dia foi admirado como algo que levaria mais informação para todas as pessoas tornou-se o exato oposto. É através dos meios de comunicação que os grupos dominantes das sociedades distópicas transmitem suas propagandas e controlam a população, conduzindo sua forma de pensar e de julgar os outros ao seu redor.
AS CLASSES SOCIAIS NAS DISTOPIAS LITERÁRIAS
Ao longo da primeira metade do Século XX, outras grandes produções literárias abordaram essa intensa divisão social. Os clássicos Admirável Mundo Novo e 1984 expõem sociedades muito semelhantes entre si, apesar de sua forma de organização e de governo ser bem diferente. Em ambos os casos, temos uma divisão extrema da sociedade em camadas distintas e que nunca entram em contato. Cada camada social repudia aquelas que estão abaixo de si e considera-se superior por apresentar qualidades adicionais que as permitem executar trabalhos mais avançados dentro da organização da sociedade.

Admirável Mundo Novo cria um conceito interessante ao determinar que as classes sociais são criadas em laboratório. As pessoas são produzidas artificialmente e, durante esse processo, recebem mais ou menos desenvolvimento cerebral de acordo com a classe à qual foram designadas. Por causa dessa programação, os indivíduos não questionam sua posição e se sentem confortáveis e felizes onde estão. Nessa sociedade, a busca pela felicidade perpétua é o que os motiva, seja pela realização de atividades prazerosas ou pela ingestão contínua do soma, que inibe suas preocupações e pensamentos críticos. Em Admirável Mundo Novo, a arte e a crítica não são mais realizadas, e tudo o que é permitido são produções que forneçam o prazer imediato a todas as pessoas. Com essa falsa sensação de felicidade constante, as pessoas dessa sociedade pouco questionam a forma como são controladas.
1984, por outro lado, emprega o uso de um regime totalitário para controlar sua população. As classes são mantidas separadas por um sistema de vigilância contínuo e onipresente, e todas as ações são monitoradas, criando uma sensação de medo nas pessoas diante da figura do Grande Irmão. As classes mais baixas ("Proles") não são mantidas em um controle tão intenso, visto que é dito no livro que tais classes não teriam o poder para se organizar por conta própria e ameaçar o poder das elites. São justamente as classes mais altas que são vigiadas para atenderem aos desígnios de seus líderes, e que são reprimidas caso não sigam todas as regras à risca. Além disso, é empregada também uma intensa propaganda de ódio contra um inimigo inexistente, mas que é tão bem construído que faz com que todas as pessoas o odeiem e o temam, tornando-se ainda mais leais ao Grande Irmão.

Nos dois casos, a divisão da sociedade em classes sociais segue uma lógica de dominação. 1984 coloca os "Proles" em uma posição extremamente rebaixada, onde são constantemente atacados como uma forma de propagar o ódio e justificar uma guerra falsa, usada para manter as pessoas alienadas da verdade e focadas no inimigo que os governantes desejam que eles acreditem. Já em Admirável Mundo Novo, as pessoas já são criadas com um determinado pensamento implantado em suas cabeças, um pensamento que as faz aceitar sua posição na sociedade sem nenhum questionamento. Em ambos os casos, nota-se uma tentativa generalizada de se evitar um pensamento crítico por parte da sociedade, de forma que ninguém questione a organização social vigente e apenas a aceite como natural.

Em um exemplo mais recente, temos a distopia adolescente Jogos Vorazes, que retrata a América do Norte dividida em distritos, todos sob o comando de uma Capital opressora. Nesse mundo, os jovens são forçados a competir em uma arena anual de gladiadores, onde apenas um sobrevive. O vencedor leva recursos e alimentos para o seu distrito por um ano. Além de serem um grande show de entretenimento, os Jogos Vorazes servem como uma ferramenta do governo da Capital, criando rivalidade entre os Distritos e os impedindo de se unirem contra a opressão. Eles também funcionam para promover o medo diante do poderio da Capital, colocando todos os distritos, dos mais ricos aos mais pobres, em uma posição servil.

METRÓPOLIS: UMA DISTOPIA DOS PRIMEIROS ANOS DO CINEMA

A temática do conflito social é algo presente nas distopias desde os seus primeiros romances. A ideia de uma sociedade completamente dominada pela tecnologia e alienada por meios de comunicação controlados pelas elites sociais vem completamente ligada a uma divisão intensa da sociedade em classes totalmente separadas entre si. Através da propaganda e de alguns insumos e benefícios, os grupos no poder garantem que as classes mais baixas se sintam satisfeitas em sua posição de subalternas, mantendo assim o equilíbrio social que lhes garante o poder. Também são usadas propagandas ideológicas que propagam o medo e a suspeita entre as pessoas, usando de um "inimigo comum", muitas vezes inventado, para impedir que as massas se unam contra seus dominadores.

Um das primeiras obras a explorar essa divisão social em uma distopia foi o filme alemão Metrópolis, de Fritz Lang. baseado no romance de Thea von Harbou, o filme mostra uma cidade na qual os ricos desfrutam de um paraíso idílico em jardins construídos no topo de arranha-céus, sem precisar trabalhar. Enquanto isso, os pobres habitam o subterrâneo da cidade e são constantemente explorados, forçados a trabalhar para operar as máquinas que fornecem energia para toda a cidade. Muitos desses operários trabalham até a exaustão e a morte, sendo consumidos pela máquina e "cuspidos" de volta quando terminam o serviço.
Um marco do Expressionismo Alemão, Metrópolis retrata uma sociedade em crise. Produzido em uma época onde a Alemanha ainda enfrentava os problemas da derrota na Primeira Guerra Mundial, ele aponta para essa sociedade completamente dividida, em que um lado não se comunica com outro. Ao mesmo tempo, mostra a importância de ambos para o andamento da sociedade, pelo menos do ponto de vista de Lang e Harbou. Os ricos controlam e planejam a cidade, e por isso vivem com seus privilégios. Contudo, o "Coração" dessa sociedade é comandado pelos trabalhadores, e é a partir de seu esforço que toda a cidade possui energia.
AS DISTOPIAS APOCALÍPTICAS DO CINEMA E DA TV
Subgênero da ficção científica, as distopias encontraram no cinema e na tv uma nova forma de se propagarem. Usando de efeitos especiais, atuações e construções de cenários, os filmes distópicos assumiram um caráter bem diferente dos livros sobre o tema, nem sempre sendo tão analíticos quanto as páginas impressas, mas apresentando algum tipo de reflexão em meio às tramas de suspense e ação criadas nas telas.
Algumas dessas obras se propuseram a uma análise satírica, que muitas vezes passou despercebida pelo público. O clássico cult dos anos 90, Tropas Estelares, pode parecer apenas um filme de ação e violência gratuita, narrando uma guerra entre os soldados da Federação e os Insetos alienígenas. Contudo, o filme traz dentro de si uma mensagem muito mais profunda e uma crítica forte sobre como seria viver em um mundo completamente militarizado. A sociedade mostrada se assemelha à imagem utópica criada em Admirável Mundo Novo, mas não demora muito para percebermos que essa imagem é criada e alimentada por um programa intenso de propaganda militar, que exalta os feitos da Federação e espalha o medo contra os terríveis Insetos, levando todas as pessoas a procurarem entrar no serviço militar para ajudar no combate. Trata-se de uma utopia para seus moradores, mas de uma distopia para o público.
Como em outras distopias, Tropas Estelares também apresenta uma divisão da sociedade em classes, muito embora não siga as divisões comuns de outras sociedades. Aqui, essa divisão é feita por padrões militares, sendo os membros do serviço secreto os mais privilegiados, detentores de poderes maiores e mais protegidos, enquanto a infantaria é composta pela grande massa da população, vista pela Federação como tropas descartáveis.
Em outras produções, o cenário apocalíptico toma conta por completo. Em Dredd (2012), entramos em uma sociedade devastada pelo poderio nuclear, em que todas as pessoas sobreviventes se concentraram em uma grande megalópole que ocupa boa parte da Costa Leste dos Estados Unidos. Nessa cidade superpopulosa e com uma grande taxa de criminalidade, a lei é exercida pelos Juízes, que assumem para si as funções de juiz, júri e executor, podendo executar criminosos no ato, sem nenhum tipo de julgamento. O maior indício distópico desse filme é o autoritarismo e o excesso de poder nas mãos da força policial, colocando a cidade em completo terror diante de um grupo de pessoas armadas que tem o amparo da lei para executar qualquer um pelo menor rompimento da lei e que, como o próprio filme mostra, não está livre da corrupção. Nesse cenário, as classes baixas se organizam para tentar sobreviver em um mundo de alta criminalidade, muitas vezes recorrendo à proteção de traficantes e assassinos que comandam os superedifícios da cidade.
Em 2013, uma nova distopia apocalíptica foi lançada. Baseado em uma HQ de enorme sucesso, O Expresso do Amanhã mostra um mundo destruído por uma grande frente fria que congelou toda a superfície. Nesse cenário, um trem que percorre todo o entorno da Terra serve como último abrigo para os sobreviventes. A bordo dele, as pessoas são segregadas em classes, com os mais ricos habitando os primeiros vagões, mais luxuosos, e os pobres presos aos vagões de trás e lutando constantemente para chegar aos vagões dianteiros. Tanto o filme de Bong Joon-Ho quanto a adaptação televisiva de 2019 retratam essa questão importante da luta dentro das classes baixas para atingir uma posição mais vantajosa, luta essa que é muitas vezes incentivada pelas classes altas para se manterem no poder.

O poder em uma distopia apocalíptica, no entanto, nem sempre vem de recursos monetários. Mad Max: Estrada de Fúria apresenta um novo contexto, onde os mais poderosos são aqueles que detêm não só o domínio dos carros e máquinas mais poderosos, mas também aqueles que dominam os recursos naturais em escassez, como água, gasolina e leite materno. Esse filme cria a imponente figura de Immortan Joe, uma entidade que comanda seus subordinados não apenas com uma postura tirânica, mas também como uma espécie de culto, sendo ele quem determina quando os recursos em suas mãos podem ser distribuídos para os pobres que se encontram à base de sua fortaleza nas rochas.

Faz sentido que, em um mundo destruído pelo apocalipse, o domínio não venha m ais daqueles que detêm recursos monetários, mas sim dos que possui mais influência, controle de recursos básicos e força bruta. Em um cenário onde toda a civilização que conhecemos foi destruída, dinheiro se torna um fator pouco interessante, tanto que a maioria das distopias quase não aborda essa temática.
O PODER PARA MANTER AS MASSAS DIVIDIDAS
Seja como for a forma de controle empregada, algo que as distopias em geral, tanto literárias quanto cinematográficas e televisivas, apresentam em comum, é a grande variedade de formas encontradas pelos grupos no poder para manter as massas sob seu controle. Formas que podem se resumir ao uso da força bruta e do medo, mas que não se resumem a isso. Na maioria dos casos citados, inclusive, o poder das elites deriva muito mais da divisão e alienação da população do que a sua submissão pelo medo.
Os grandes autores desse subgênero, como George Orwell e Aldous Huxley, reconhecem o poder da força bruta. Não à toa, seus livros apresentam essa possibilidade: a constante vigilância em 1984 impõe um medo terrível das ações das forças do Grande Irmão, e mesmo Admirável Mundo Novo, onde todas as pessoas são manipuladas para serem felizes o tempo todo, existe uma tropa de choque pronta para agir caso algo saia do controle. No entanto, ambos os autores reconhecem que o maior poder sobre o povo está em mantê-lo ignorante e alienado de sua condição. Seja pelos Dois Minutos de Ódio ou pelo soma, seus objetivos são os de manter a população presa na situação em que está, desinformadas e satisfeitas com uma falsa situação de segurança na estagnação da sociedade.
Muitas distopias também podem fazer um bom uso da força bruta e do fator do autoritarismo sempre presente e sufocante. Contudo, são as estratégias mais sutis, de propaganda constante e de destruição de uma cultura crítica, que realmente estabelecem o controle nessas sociedades. Um povo que se encontre completamente satisfeito com as coisas do jeito que estão, ou que acredita que existe um grande inimigo exterior que justifica os abusos de seus líderes, é um povo que nunca se voltará contra a ordem dominante. A violência pode permitir que os grupos no poder tenham a obediência das massas através do medo. Mas esses autores e cineastas sabiam que é a partir do controle da informação e da destruição do conteúdo crítico que a população é, de fato, subjugada.