A fantasia se consolidou como gênero literário no século XX graças ao trabalho de inúmeros autores e autoras que, baseando-se em mitos antigos e fábulas tanto da Idade Antiga quanto da Era Medieval, criaram histórias dominadas pelo extraordinário e, muitas vezes, pelo absurdo, povoando a imaginação dos leitores com personagens e criaturas maravilhosas e terras além do nosso alcance.
Entre os grandes mestres do gênero fantástico, está C.S. Lewis. Suas contribuições para a popularização da fantasia são marcantes, mas seu trabalho vai muito além do ramo fantástico. Entre todos os seus trabalhos, sejam ficcionais ou não, a sua obra mais famosa é certamente As Crônicas de Nárnia, das quais o primeiro volume, lançado em 1950, completa setenta anos em 2020, que também é o aniversário de 15 anos da primeira adaptação cinematográfica dessa história.
Por conta disso, esse texto é dedicado a contar um pouco sobre a vida e a obra desse mestre da escrita, seja fantasiosa ou não-ficcional.
A JUVENTUDE EM MEIO AO FANTÁSTICO
Clive Staples Lewis nasceu em 29 de novembro de 1898, em Belfast, na Irlanda. Durante sua infância, ele sempre ficou completamente extasiado pelas ideias de animais incríveis e histórias de bravura e feitos heroicos, o que levou ele e seu irmão a criarem uma terra imaginária, chamada Boxen, onde criaram a sua própria história por anos.
Aos 10 anos, Lewis perdeu a sua mãe, vítima de câncer, e foi enviado por seu pai para estudar na Wynyard School, em Watford, mas a escola fechou devido à falta de alunos. Após algumas trocas sucessivas de escolas, Lewis acabou sendo admitido em Malvern College, em 1913, onde estudou por quase um ano antes de passar a estudar com um tutor privado.
Foi por volta dessa época que Lewis, obcecado por mitologia, abandonou a sua fé cristã e se tornou um ateu. Foi também durante a sua adolescência que ele se tornou fascinado pela literatura escandinava antiga, preservadas em sagas islandesas. Logo, ele abandonou as histórias de Boxen e começou a explorar outras formas de arte e escrita, como a poesia e a ópera, para expressar esse seu novo amor pela mitologia nórdica e pela natureza.
A GUERRA, OS TEMPOS EM OXFORD E O RETORNO AO CRISTIANISMO
Lewis entrou na Universidade de Oxford em 1917 e, lá dentro, alistou-se no Corpo de Treinamento de Oficiais, que ele via como o meio mais fácil de ele se juntar ao exército. Após o seu treinamento, ele foi escalado para o Terceiro Batalhão de Infantaria Leve de Somerset e, em novembro de 1917, foi enviado para o Vale do Somme, na França. Lewis lutou durante meses na guerra de trincheira, experimentando horrores indescritíveis até ser ferido por estilhaços de uma bomba em abril de 1918. Em outubro, ele foi enviado de volta à Inglaterra e, em dezembro, ele foi desmobilizado do exército.
De volta a seus estudos, Lewis se graduou com um foco em Literatura e Filosofia Clássica e, em 1925, recebeu um posição como tutor no Magdalen College. Foi lá que ele se uniu a um grupo de intelectuais e escritores, entre os quais se encontravam o seu irmão Warren e o escritor J.R.R. Tolkien, de quem Lewis se tornaria um grande amigo. Foi, inclusive, através de conversas e debates com Tolkien que ele se viu abraçando novamente a sua fé cristã.
O seu retorno ao Cristianismo ficou bastante marcado em seus trabalhos, tanto de ficção quanto de não-ficção. Lewis se tornou famoso por seus textos apologéticos, nos quais ele explicava as suas crenças espirituais valendo-se de argumentos lógicos e filosofia.
A ENTRADA NA LITERATURA
C.S. Lewis já havia começado a publicar trabalhos escritos em 1919, quando, incentivado por seu professor, escreveu Spirits in Bondage, uma coletânea de poemas que ainda hoje possui destaque em sua obra, não só por ser o seu primeiro trabalho publicado, mas também pela escolha da poesia no lugar da prosa, mais comum nas obras do autor. Os temas tratados por Lewis nesse livro também diferem muito dos temas gerais de suas outras obras, principalmente pelo fato de que, naquele momento, ele ainda não havia se reconvertido para o Cristianismo.
Sua segunda obra publicada foi o poema narrativo Dymer, dito como o seu poema mais importante, que apresenta um tom satírico ao abordar questões relacionadas à tentação das fantasias de amor, poder e luxúria. Após esse trabalho, Lewis mergulhou em alguns trabalhos de não-ficção, entre os quais se destaca A Alegoria do Amor, ensaio no qual ele procura estudar as obras alegóricas que caracterizaram a literatura inglesa na virada da Idade Média para o Renascimento. Por esse trabalho, Lewis recebeu o Prêmio Hawthornden.
Em 1939, ele lançou o seu primeiro livro de ficção científica, Além do Planeta Silencioso, a primeira obra do que depois ficou conhecida como A Trilogia Espacial. A história fala de um filólogo que é sequestrado por dois cientistas e levado ao Planeta Marte para ser oferecido como sacrifício humano ao governante daquele mundo, Oyarsa. Lewis conseguiu unir uma narrativa fantástica com conteúdos filosóficos e teológicos, levantando inúmeras questões e debates ao longo de sua história, o que logo se tornaria uma marca registrada de suas obras.
Após a eclosão da Segunda Guerra Mundial, Lewis tentou reingressar nas Forças Armadas para treinar cadetes, mas foi recusado. Entre 1941 e 1943, época em que a Inglaterra estava sob violento ataque de bombardeios nazistas, ele trabalhou em transmissões de rádio em programas religiosos e falou muito sobre a sua fé cristã. Essas transmissões foram bem-vistas pela população e pelas pessoas em serviço em Londres, que acharam um meio de obter uma certa esperança em meio à tragédia.
A CHEGADA A NÁRNIA
Durante os Anos 40, Lewis começou a trabalhar naquela que seria a sua obra de ficção mais famosa de todos os tempos, As Crônicas de Nárnia. Tratava-se de um compilado com sete livros, iniciados por O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, que foi publicado em 1950. A história fala sobre os quatro irmãos Pevensie, que durante o período da guerra descobrem um mundo extraordinário dentro de um guarda-roupa misterioso. Nesse novo universo, chamado de Nárnia, eles conhecem criaturas mitológicas e animais falantes, e logo aprendem a lutar para poderem defender essa terra das artimanhas da Feiticeira Branca.
Apesar de ter sido o primeiro a ser publicado, no entanto, O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa é o segundo livro da saga em ordem cronológica, sendo antecedido por O Sobrinho do Mago, que só foi publicado em 1955 e que preenche muitas lacunas a respeito de Nárnia e da história do primeiro livro publicado, narrado os primórdios dessa terra fantástica, sua criação pelo leão Aslan e a libertação da Feiticeira Branca.
Seguindo a ordem cronológica da história, o terceiro livro é O Cavalo e seu Menino, publicado em 1954 e que narra os acontecimentos da era de ouro de Nárnia, sob o reinado dos irmãos Pevensie. Após essa história, a trama acompanha a seguinte ordem: Príncipe Caspian (1951), A Viagem do Peregrino da Alvorada (1952) e A Cadeira de Prata (1953). O último livro publicado é também o último cronologicamente, e recebe o título A Última Batalha. Publicado em 1956, esse capítulo final conta sobre a invasão de Nárnia pela Calormânia, todos os humanos "amigos de Nárnia" se unem para tentar defendê-la, enquanto Aslan cria uma nova terra onde os narnianos possam habitar.
Os livros foram bem aceitos pelo público, fazendo com que a saga obtivesse prestígio ao longo das décadas subsequentes e alcançasse enorme popularidade mesmo nos dias atuais. Muito além da fantasia, porém, Lewis apresentou uma grande variedade de temas bíblicos ao longo de sua história, apesar de o próprio autor afirmar que elas não são uma alegoria para o mundo real. Um bom exemplo dessa comparação é o leão Aslan, uma figura presente ao longo de toda a história e de aspecto quase divino, que possui características que o aproximam da figura de Jesus Cristo.
O LEGADO DE UM PENSADOR
Lewis teve uma carreira bastante complexa tanto na ficção quanto na não-ficção. Em seus principais ensaios, como em O Grande Divórcio (1946) e Milagres (1947), ele argumenta sobre importantes questões de fé e são mantidas em alta consideração por diversos teólogos, estudiosos e leitores em geral ainda nos dias de hoje. Além dos textos religiosos, no entanto, ele também manteve seu amor pela mitologia clássica, tendo lançado em 1956, o livro Até que Tenhamos Rostos, uma recontagem do mito de Psique e Cupido.
No campo da ficção, As Crônicas de Nárnia se tornaram um dos mais importantes marcos da fantasia literária, e inspiraram uma série de adaptações para outras mídias ao longo das décadas. Em 1979, uma versão animada de O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa foi lançada. O mesmo livro foi adaptado para o cinema em 2005 e estrelou Tilda Swinton como a Feiticeira Branca, James McAvoy como o fauno Sr. Tumnus e Liam Neeson na voz do leão Aslan. Esse filme ainda lançaria duas continuações: Príncipe Caspian em 2008, com Ben Barnes interpretando o príncipe, e A Viagem do Peregrino da Alvorada em 2010. Atualmente, a Netflix também está preparando uma adaptação seriada dos livros, mas pouco se sabe sobre essa produção até agora.
C.S. Lewis é, ainda hoje, um autor extremamente lido e venerado, seja por seus ensaios que refletem sobre questões fundamentais do cristianismo ou por suas obras de ficção que maravilharam inúmeras pessoas ao longo de anos. Por todas as suas conquistas, Lewis recebeu o título de Professor de Literatura da Universidade de Cambridge em 1954.
Em 1956, ele se casou com Joy Gresham, uma professora de inglês americana com quem ele se correspondia regularmente. Os dois a princípio tiveram um casamento civil, que possibilitou que Joy continuasse a morar no Reino Unido. A união dos dois foi feliz, apesar de curta. Menos de um ano depois do casamento, em 1957, Joy foi diagnosticada com câncer terminal. Os dois ainda se casariam na Igreja e viveriam alguns anos juntos, antes de a doença levar Joy ao falecimento em 13 de julho de 1960.
Em 1963, Lewis resignou de sua cadeira em Cambridge após sofrer um ataque cardíaco. Tendo sido diagnosticado com nefrite em 1961, ele vinha passando por problemas já há alguns anos, mas nos últimos meses havia dado sinais de recuperação. No final de 1963, no entanto, ele sofreu um colapso devido a uma falência renal e faleceu uma semana antes de seu aniversário de 65 anos.