Seguindo a atual corrente da Marvel de explorar o chamado Multiverso, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura traz de volta o excêntrico personagem místico vivido por Benedict Cumberbatch para o que deveria ser a obra-prima dentro dessa fase do MCU, explorando mais a fundo o conceito de infinitas realidades e a catastrófica colisão entre elas. E mesmo que esse filme consiga fazer uma exploração mais interessante desse conceito, ainda assim não mergulha por completo nas possibilidades dessa ideia, preferindo usá-la apenas como oportunidade para fan service.
A trama acompanha Stephen Strange (Cumberbatch) a partir do momento em que ele conhece America Chavez (Xochitl Gomez), uma garota com o extraordinário poder de viajar através das realidades e que, por causa disso, se tornou o alvo das ações da Feiticeira Escarlate, Wanda Maximoff (Elizabeth Olsen). Ainda de luto por suas infinitas perdas, Wanda está decidida a usar os poderes de America para viajar a uma realidade onde ela ainda tenha seus filhos e uma vida feliz, mas Strange sabe que isso poderia levar à destruição de todas as realidades e luta para impedi-la.
Para um filme ainda preso na velha fórmula Marvel, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, assim como outros dessa nova fase do MCU, detém várias características que o diferenciam um pouco dos demais desse universo, fruto do trabalho do diretor Sam Raimi. Capaz de invocar uma aura tensa ao filme (mesmo com seus toques de alívio cômico), Raimi introduz no Universo Marvel o conceito do terror que, embora não trabalhado a exaustão, reforça alguns pontos cruciais do filme e torna os momentos de tensão mais recheados de uma sensação de aflito. Explorando os lados mais sombrios dos personagens, principalmente Wanda, o diretor consegue deixar muito mais poderosos os seus dramas internos e lhes confere uma imagem completamente nova sem, contudo, destruir totalmente a construção feita deles até então.
Assim, em meio às maravilhas de efeitos especiais, que produzem realidades absurdamente estonteantes, feitiços e criaturas fantásticos e cenas alucinantes, o filme incorpora uma aura que oferece maior seriedade aos eventos que transcorrem na tela. É uma sensação quase igual àquela causada por Guerra Infinita e Ultimato, onde há um peso enorme sobre os personagens, fazendo o público ter a sensação de que nem tudo vai dar certo no final. Sensação essa reforçada pelas inúmeras visitas a realidades alternativas extremamente sombrias, onde Strange confronta os seus múltiplos destinos e o que pode transcorrer com ele a qualquer momento por conta de seus próprios poderes e emoções.
Longe do pico de suas performances como ator, Cumberbatch ainda sustenta uma atuação sólida, que entrega os lados mais densos de seu personagem com uma força grandiosa. O mesmo pode ser dito de Elizabeth Olsen, que incorpora o sofrimento de sua personagem e justifica suas ações pela simples explosão de luto e raiva e tristeza que ela consegue transmitir em cada cena.
O trabalho dos atores, somados aos visuais bem realizados e o trabalho suado de Raimi, certamente conseguem levantar um filme que, sem tudo isso, seria extremamente terrível. Apesar de um conceito muito bom e um potencial grande para a sua história, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura desperdiça seu potencial com uma trama que parece receosa de avançar mais a fundo, como se o multiverso ainda fosse um terreno que eles não quisessem pisar muito. Não só isso, mas para um conceito que já vem sendo trabalhado há mais de um ano, o multiverso parece necessitar de infinitas explicações, o que derruba o ritmo do filme em nome de exposição sobre algo que o público realmente interessado no universo já conhece.
Pior do que a quantidade de explicações é o fato de que elas estão sendo dadas para o Doutor Estranho, o suposto mestre das artes místicas desse universo. É compreensível ter de explicar essas questões para um personagem como o Homem-Aranha, que não entende nada de magia, ou durante o primeiro filme do Doutor Estranho, quando o personagem estava apenas ingressando no universo da magia. Mas agora, considerando que Strange já é um mago poderosíssimo há seis/sete anos, essas explicações parecem apenas redundantes, uma forma barata de mover a trama, mas que faz com que o personagem salte de um momento de explicação para outro, tornando-se extremamente passivo na história e sem grandes momentos para desvendar os segredos sozinho. Não é à toa que muitos disseram que Strange não é o protagonista desse filme, visto que suas ações durante a trama possuem tão pouco brilho que ele se vê ofuscado várias vezes por personagens mais ativos, como a própria Wanda.
Mas o problema maior do filme é o fato de que o Multiverso, desejado há tanto tempo pelos fãs, aparentemente não serve para nada além de proporcionar aparições de personagens antigos e atores de outras épocas dos filmes de herói da Marvel. O fan service de Multiverso da Loucura é enorme, mas não é muito bom, reduzindo-se a apenas algumas aparições de personagens que pouco interferem na história, fornecendo uma explicação ou outra e logo em seguida deixando a cena. É preciso reconhecer que essas aparições são efetivas, visto que o público se entusiasma tanto com aquele ator que fez um herói famoso há vinte anos, ou aquela atriz que interpreta a personagem de uma série, ou mesmo o ator que fez parte do elenco dos sonhos de muita gente, que não percebe a pouca relevância que eles têm para a história ou, pior ainda, o fato de que essa trama empacou em um lugar e não está se desenrolando de uma maneira orgânica e fluida como deveria.
Isso se tornou um problema frequente na Marvel, que deixou de lado a boa construção de sua história e universo e parece sobreviver agora dessas homenagens aos desejos dos fãs, que se sustentam apenas pela sua duração no filme e são rapidamente esquecidas. É uma crise de um universo que já esgotou suas ideias, desperdiçou um excelente final em Ultimato e agora luta para se manter de pé por quanto tempo for possível, mesmo que a cada nova produção o interesse dos fãs se esvaia ainda mais.
Multiverso da Loucura mantém bons visuais e os feitiços cativantes de Stephen Strange, e é até um filme divertido para aqueles que não esperam grandes coisas da Marvel e não possuem expectativas quanto ao que vão receber. Ainda assim, um universo cinematográfico não pode viver apenas de fan service, e considerando o quanto esse prometia ser um grande evento desse universo, seu resultado final, com todos os bons momentos, ainda assim é decepcionante.