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Análise & Opinião

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Foi Tudo Apenas Um Sonho? A Teoria De Que Nada Em Alguns Filmes É Real

9/10/2020

Muitos filmes brincam com a nossa noção da realidade e nos fazem questionar aquilo que vemos em cena. Em muitos desses casos, o povo tem a ideia de estar presenciando um sonho da protagonista ou um delírio. Confira com a gente alguns exemplos de onde essa teoria já foi empregada

escrito por
Luis Henrique Franco

Muitos filmes brincam com a nossa noção da realidade e nos fazem questionar aquilo que vemos em cena. Em muitos desses casos, o povo tem a ideia de estar presenciando um sonho da protagonista ou um delírio. Confira com a gente alguns exemplos de onde essa teoria já foi empregada

escrito por
Luis Henrique Franco
9/10/2020

Uma coisa que o cinema proporcionou ao público ao longo dos anos foi a capacidade de desenvolver teorias, das que fazem mais sentido às mais malucas. Seja para pensar sobre os filmes “cult” ou especular sobre o destino dos personagens em alguma franquia, muitos cineastas colocam detalhes em suas tramas que não passam despercebidos pela audiência e que são colocados ali justamente para provocar esse tipo de pensamento extra.

Entre as diversas teorias criadas para os mais diversos filmes e séries, no entanto, nenhuma parece ser mais recorrente e relembrada do que a teoria de que tudo o que foi mostrado no filme, ou pelo menos uma cena de extrema importância (muitas vezes a cena final), não passou de um sonho ou alucinação do personagem principal. Nesses casos, o protagonista do longa geralmente se encontra em alguma situação de dificuldade ou de ameaça da qual ele não conseguirá sair e, em consequência disso, acaba imaginando um cenário no qual ele se veria livre dessa situação, o “final feliz” que ele não conseguirá alcançar.

Muitas vezes introduzida pelos próprios diretores do filme como uma espécie de provocação para o pensamento do público, esse tipo de teoria é pensada para muitos filmes que, muitas vezes, não tinham esse tipo de possibilidade em mente. Ao que parece, sempre que um personagem se encontra em alguma situação da qual ele não teria quase nenhuma chance de escapar, essa teoria volta a ressurgir, quer ela faça sentido dentro daquela trama ou não.

NENHUMA ESCAPATÓRIA ALÉM DO SONHO?

Filmes e séries tem uma liberdade enorme para pensar em soluções para o impossível e colocar seus personagens em situações extremamente terríveis e, de alguma forma, fazer com que eles escapem. Em geral, o público aceita as soluções propostas e é capaz de se afastar da visão pragmática sobre realidade e entender que, em produções do cinema, algumas regras podem ser quebradas.

Contudo, alguns espectadores, após analisar as cenas em questão, chegam à conclusão de que seria impossível, mesmo dentro dos padrões do cinema e das regras estabelecidas para aquele universo cinematográfico, para o personagem sobreviver à determinada situação. Com base nesse pressuposto, a introdução da ideia do sonho surge para justificar como as cenas seguintes, que geralmente mostram um final feliz para o personagem em questão, podem estar nos filmes.

Não precisa necessariamente ser um sonho, podendo também ser a ideia de uma passagem para um mundo espiritual pós-morte. Uma teoria semelhante foi apresentada para a animação Up: Altas Aventuras, da Pixar. Famoso por sua introdução, que acompanha a vida de Carl e Ellie até o triste momento da morte dela, o filme então segue Carl, já bastante velho, em sua jornada para levar a casa onde viveu com sua amada para o Paraíso das Cachoeiras, na América do Sul. Nessa jornada, ele é acompanhado pelo jovem escoteiro Russell. A teoria conta que Carl na realidade faleceu, e que Russell é um anjo enviado para guiar a sua alma para o céu, representado no filme pelo Paraíso das Cachoeiras.

Às vezes, tais teorias surgem a partir de regras estabelecidas pelos próprios filmes, mas que parecem ser ignoradas a partir de certo momento. Em Os Caça-Fantasmas, o Dr. Egon Spengler (Harold Raimis) afirma desde o começo das operações do grupo de investigações paranormais de que cruzar os raios usados para capturar os fantasmas poderia resultar em uma catástrofe que ceifaria a vida do grupo. No entanto, durante a batalha final contra o terrível Gozer (Slavitza Jovan) e o icônico boneco de marshmallow gigante, o próprio Dr. Egon diz ao grupo para ignorarem o que ele havia dito e cruzarem os raios em uma tentativa de deter o vilão. O resultado é uma enorme explosão que bane o mal, mas que aparentemente não mata os Caça-Fantasmas. Pois bem, de acordo com uma teoria, os quatro foram mortos durante a explosão, e tanto o final do filme quanto a sua sequência, lançada em 1989, narram a passagem deles pelo purgatório.

Essas teorias chegam inclusive a filmes mais leves, como Grease – Nos Tempos da Brilhantina. No famoso musical, um dos versos da música “Summer Nights” que é cantado por Danny (John Travolta) diz como ele salvou Sandy (Olivia Newton-John) de se afogar. Apenas essa passagem foi suficiente para que muitos fãs teorizassem que Danny não conseguiu, de fato, salvá-la, e que ela se afogou. Sendo assim, o filme seria um sonho final de Sandy, no qual Danny a conduz para a vida pós-morte (o que, de certa forma, é uma metáfora interessante para a cena dos dois voando para o céu a bordo de um automóvel).

Esse tipo de teoria não poupa nem mesmo os filmes mais cultuados dos maiores diretores, visto que Taxi Driver, de Martin Scorsese, também é vítima desse tipo de pensamento. Em um filme que acompanha os delírios e os fluxos de pensamento do personagem Travis Bickle (Robert de Niro), é razoável imaginar que algumas cenas não são, de fato, reais, mas fruto dos pensamentos do personagem. Sendo assim, é compreensível que algumas pessoas acreditem que Travis não sobreviveu ao tiroteio no bordel, durante o qual ele foi gravemente ferido. Para essas pessoas, as cenas finais, que mostram manchetes de jornal exaltando Travis como um herói e o reencontro dele com Betsy (Cybill Shepherd),não passam dos sonhos e ilusões do personagem em seus momentos finais, no qual é mostrado aquilo que ele acredita ou espera que teria acontecido caso ele sobrevivesse.

Em todos os exemplos acima, existem argumentos a favor dessas teorias e argumentos que as tornam absurdas. Seja pela própria proposta que o filme estabelece e alimenta ou pela dificuldade de uma pessoa comum em escapar das situações mostradas, somos levados a questionar como tais personagens sobreviveram. Em geral, esse questionamento assume a forma apenas de uma incredulidade passageira no momento em que saímos do cinema. Levar esse pequeno momento de desconfiança para a elaboração de uma enorme teoria é algo divertido para se propor um debate, mas muitas vezes tais teorias são levadas a extremos grandes demais que as tornam extravagantes e tão inacreditáveis quanto os filmes e as cenas sobre os quais elas falam. Às vezes, os personagens só sobreviveram mesmo.

PARA NOS FAZER DUVIDAR DE TUDO

Vale lembrar que a margem para a existência dessas teorias é criada por aspectos apresentados no próprio enredo e na trama do filme. Pequenos detalhes que levantam as suspeitas dos espectadores. E muitas vezes, é a própria intenção dos diretores colocar esses detalhes para criar exatamente esse tipo de discussão, dando a seus filmes um ar de mistério que propicia um debate sobre o seu real significado. No caso da teoria de que algumas cenas do filme são fruto de um sonho ou alucinação, esses detalhes propositais procuram criar um duplo sentido nas cenas em questão.

Um exemplo já clássico de como uma cena pode ser construída para confundir seus espectadores é o final de O Vingador do Futuro, a versão original de Paul Verhoeven, lançada em 1990. Nesse filme, acompanhamos Doug (Arnold Schwarzenegger), que ao visitar um centro de implante de memória, decide ter a vida de um agente secreto. Contudo, o implante o faz reviver memórias antigas de quando ele atuava como Hauser, um agente da resistência dos colonos de Marte. Enquanto luta para desvendar seu passado e sua identidade, Doug/Hauser é constantemente levado a pensar que o que está vivendo não passa de um sonho, uma memória implantada no centro, e que nada daquilo é de fato real. Por várias vezes, o espectador se questiona se aquilo é verdadeiro ou não, até um momento em que o filme praticamente convence o espectador de que aquilo é real. Mas então, na cena final, a dúvida é implantada mais uma vez, pois não só a cena é quase uma réplica de uma anterior, na qual Doug tem um pesadelo, como o próprio personagem reconhece a possibilidade ao dizer a frase “Acabei de ter um pensamento horrível: e se tudo isso for um sonho?”, plantando a dúvida de vez na cabeça do espectador sem oferecer uma resposta definitiva.

Outro filme cuja proposta é justamente brincar com a ideia de manipulação de sonhos é o consagrado A Origem, de Christopher Nolan, cuja cena final é alvo de intensos debates até os dias de hoje, passados mais de dez anos. O filme lida com a possibilidade de manipulação das pessoas através dos sonhos e, logo de início, estabelece a possibilidade de alguém ficar tanto tempo dentro do mundo dos sonhos que não é capaz de definir mais o que é realidade, a não ser por um pequeno amuleto que ele sempre carrega. Essa premissa é levada para o final do filme, quando o personagem de Leonardo DiCaprio, Cobb, após cumprir suas funções e dar a seus clientes aquilo que eles desejam, conseguem finalmente retornar para casa e rever os seus filhos. Mas o próprio Cobb se sente inseguro diante da possibilidade e pega o seu amuleto, um pião que não pararia de rodar no mundo dos sonhos, para ter certeza. Contudo, a visão de seus filhos o faz se esquecer do amuleto, que fica rodando na mesa por alguns segundo e inclusive ameaça cair, mas nunca o faz até que a cena fica escura e o filme acaba.

Por anos, fãs têm debatido se, no final, aquele reencontro era um sonho de Cobb ou se era a realidade. E mesmo agora, depois de o ator Michael Caine ter dito que qualquer cena na qual ele aparecesse no filme se passava na realidade, muitos parecem insatisfeitos e mantêm o debate vivo.

Em filmes que acompanham o pensamento de um protagonista, seu dia-a-dia e, inclusive, seus delírios, é comum que diretores estabeleçam cenas que o público não tem certeza se são reais ou não. No caso de Coringa, a ideia é que o protagonista Arthur (Joaquin Phoenix) sofre de um grave distúrbio no qual ele imagina muitas coisas como sendo reais. Sua relação com o apresentador Murray (Robert de Niro), o fato de Thomas Wayne (Brett Cullen) ser o seu pai, seu relacionamento com Sophie (Zazie Beetz), são tudo fruto de seus delírios. Quando nos damos conta disso, começamos a nos perguntar o que do que está sendo mostrado é real e o que está acontecendo apenas na cabeça de Arthur. No final, diante da cena em que Arthur é confrontado com uma entrevistadora no manicômio, somos levados inclusive a questionar se todo o filme realmente aconteceu ou se foram apenas as ilusões e os desejos dele.

Grandes diretores são capazes de usar a incerteza para fazer seu público pensar e imaginar possibilidades verossímeis para aquilo que foi mostrado. Quando são bem-sucedidos, esses cineastas conseguem fazer com que suas obras sejam debatidas e permaneçam relevantes por inúmeros anos.

QUANDO O SONHO SAI ERRADO

No geral, a teoria de que tudo não passa de um sonho funciona melhor em filmes que não deixam isso explícito e permitem ao seu público debater sobre a possibilidade de isso ser real. Filmes que admitem que tudo de fato não passa de um sonho tendem a não ser tão valorizados e, inclusive, acabam fracassando em cativar o público. Isso acontece principalmente porque, além de impedir que as pessoas pensem sobre o que estão assistindo e debatam sobre as cenas em questão, reconhecer que tudo não passou de um sonho acaba se tornando uma saída fácil de enredo, tirando completamente a tensão que a cena teria se ela fosse real.

A saída do sonho é interessante quando é apenas sugerida, sem que sua existência possibilite uma saída fácil para os protagonistas. Em muitos casos, inclusive a sugestão bem feita de que tudo não passa de um sonho pode tornar a situação do personagem ainda pior. Nos exemplos acima, as teorias sugerem ou que os personagens estão mortos e as cenas finais são seus delírios finais, ou que eles estão presos em alguma situação deplorável na qual o final feliz surge apenas como uma possibilidade para a mente deles. Nesses casos, a personagem começa a sonhar depois que a situação horrível aconteceu, não antes. A situação não é fruto do sonho, mas é o que desencadeia o mesmo. E nesses casos, temos geralmente bons filmes que são debatidos constantemente por seus finais ambíguos. Mas quando toda a situação acontece apenas no sonho, e ao acordar a personagem se vê livre dela, o que é provocado no expectador é uma infeliz sensação de trapaça.

Um dos casos mais aparentes desse erro cometido pelos cineastas é o filme O Vidente, que apresenta Nicolas Cage como um mago capaz de ver o futuro e que é perseguido pelo FBI, que pretende usar suas habilidades para impedir um ataque terrorista. Mesmo relutante, ele acaba ajudando os agentes, mas quando chega o clímax da história, ele é incapaz de impedir a explosão de uma bomba na cidade, com consequências devastadoras para todos. Por um breve momento, parece que o filme está prestes a tomar uma atitude ousada, encerrando sua história daquela forma e dizendo que mesmo um homem capaz de prever o futuro não conseguiu impedí-lo. Mas então, o filme volta atrás e revela que aquilo tudo não passou de um sonho do personagem, que agora tem a localização exata da bomba e de onde o ataque vai ocorrer, sem precisar se arriscar efetivamente.

Outro caso onde a revelação de uma visão prova-se um verdadeiro tiro no pé para os cineastas foi o desfecho de A Saga Crepúsculo: Amanhecer, Parte 2. O que se inicia como uma luta acirrada entre a família Cullen e os Volturi, em que vampiros e lobisomens lutam lado a lado para proteger a família de Bella (Kristen Stewart) e Edward (Robert Pattinson), logo no final se revela como uma visão que a vidente Alice (Ashley Greene) compartilha com o líder dos Volturi, Aro (Michael Sheen), sobre o que vai acontecer se ele decidir lutar. Toda a tensão, a tristeza e a excitação da batalha final entre os dois lados é quebrada pelo fato de que tudo não passou de uma ilusão, e que todas as mortes, sacrifícios e conflitos daquela última cena não foram reais.

Apostar na ideia de um sonho sempre é um negócio arriscado, principalmente se o seu objetivo é justamente definir o sonho como o que de fato aconteceu, e não como uma teoria possível para se entender o seu filme.

POR QUE PRECISA SER UM SONHO?

A ilusão, o delírio e a fantasia são sempre saídas possíveis quando um filme aborda o tratamento de um personagem, e o cinema possui uma grande capacidade para criar tramas intrincadas que provocam dúvida na audiência. O espectador tem sempre que se lembrar que o que está sendo mostrado na tela não é, necessariamente, a realidade do universo em que o filme se passa, podendo incluir tanto o que de fato aconteceu quanto a visão dos personagens sobre o que aconteceu e, inclusive, seus delírios e alucinações.

A verdade é que sonhos são uma resposta simples para as pessoas aceitarem situações inacreditáveis, e mesmo que a graça do cinema seja justamente abrir espaço para a aceitação do fantasioso, nossos cérebros nem sempre conseguem aceitar algumas coisas completamente improváveis. Nesses casos, o sonho pode surgir como uma resposta mais fácil para uma determinada situação, desde que esta resposta seja possibilitada pelo enredo.

Mas é preciso ter cuidado ao lidar com essa possibilidade. O sonho funciona como estratégia narrativa desde que não elimine as consequências das ações do personagem e que, ao contrário, crie situações que explorem ao máximo as possibilidades narrativas. Isso porque, mesmo nos filmes onde a teoria do sonho surge para justificar um final feliz improvável, essa nova possibilidade abre uma nova explicação para o filme e pode levar as pessoas a analisarem muitas outras cenas do filme. Tal teoria funciona nos casos em que atua como uma ampliadora de possibilidades narrativas, não como uma resposta definitiva para elas.

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Direção: 
Criação:
Roteirista 1
Roteirista 2
Roteirista 3
Diretor 1
Diretor 2
Diretor 3
Elenco Principal:
Ator 1
Ator 2
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Muitos filmes brincam com a nossa noção da realidade e nos fazem questionar aquilo que vemos em cena. Em muitos desses casos, o povo tem a ideia de estar presenciando um sonho da protagonista ou um delírio. Confira com a gente alguns exemplos de onde essa teoria já foi empregada

crítica por
Luis Henrique Franco
9/10/2020

Uma coisa que o cinema proporcionou ao público ao longo dos anos foi a capacidade de desenvolver teorias, das que fazem mais sentido às mais malucas. Seja para pensar sobre os filmes “cult” ou especular sobre o destino dos personagens em alguma franquia, muitos cineastas colocam detalhes em suas tramas que não passam despercebidos pela audiência e que são colocados ali justamente para provocar esse tipo de pensamento extra.

Entre as diversas teorias criadas para os mais diversos filmes e séries, no entanto, nenhuma parece ser mais recorrente e relembrada do que a teoria de que tudo o que foi mostrado no filme, ou pelo menos uma cena de extrema importância (muitas vezes a cena final), não passou de um sonho ou alucinação do personagem principal. Nesses casos, o protagonista do longa geralmente se encontra em alguma situação de dificuldade ou de ameaça da qual ele não conseguirá sair e, em consequência disso, acaba imaginando um cenário no qual ele se veria livre dessa situação, o “final feliz” que ele não conseguirá alcançar.

Muitas vezes introduzida pelos próprios diretores do filme como uma espécie de provocação para o pensamento do público, esse tipo de teoria é pensada para muitos filmes que, muitas vezes, não tinham esse tipo de possibilidade em mente. Ao que parece, sempre que um personagem se encontra em alguma situação da qual ele não teria quase nenhuma chance de escapar, essa teoria volta a ressurgir, quer ela faça sentido dentro daquela trama ou não.

NENHUMA ESCAPATÓRIA ALÉM DO SONHO?

Filmes e séries tem uma liberdade enorme para pensar em soluções para o impossível e colocar seus personagens em situações extremamente terríveis e, de alguma forma, fazer com que eles escapem. Em geral, o público aceita as soluções propostas e é capaz de se afastar da visão pragmática sobre realidade e entender que, em produções do cinema, algumas regras podem ser quebradas.

Contudo, alguns espectadores, após analisar as cenas em questão, chegam à conclusão de que seria impossível, mesmo dentro dos padrões do cinema e das regras estabelecidas para aquele universo cinematográfico, para o personagem sobreviver à determinada situação. Com base nesse pressuposto, a introdução da ideia do sonho surge para justificar como as cenas seguintes, que geralmente mostram um final feliz para o personagem em questão, podem estar nos filmes.

Não precisa necessariamente ser um sonho, podendo também ser a ideia de uma passagem para um mundo espiritual pós-morte. Uma teoria semelhante foi apresentada para a animação Up: Altas Aventuras, da Pixar. Famoso por sua introdução, que acompanha a vida de Carl e Ellie até o triste momento da morte dela, o filme então segue Carl, já bastante velho, em sua jornada para levar a casa onde viveu com sua amada para o Paraíso das Cachoeiras, na América do Sul. Nessa jornada, ele é acompanhado pelo jovem escoteiro Russell. A teoria conta que Carl na realidade faleceu, e que Russell é um anjo enviado para guiar a sua alma para o céu, representado no filme pelo Paraíso das Cachoeiras.

Às vezes, tais teorias surgem a partir de regras estabelecidas pelos próprios filmes, mas que parecem ser ignoradas a partir de certo momento. Em Os Caça-Fantasmas, o Dr. Egon Spengler (Harold Raimis) afirma desde o começo das operações do grupo de investigações paranormais de que cruzar os raios usados para capturar os fantasmas poderia resultar em uma catástrofe que ceifaria a vida do grupo. No entanto, durante a batalha final contra o terrível Gozer (Slavitza Jovan) e o icônico boneco de marshmallow gigante, o próprio Dr. Egon diz ao grupo para ignorarem o que ele havia dito e cruzarem os raios em uma tentativa de deter o vilão. O resultado é uma enorme explosão que bane o mal, mas que aparentemente não mata os Caça-Fantasmas. Pois bem, de acordo com uma teoria, os quatro foram mortos durante a explosão, e tanto o final do filme quanto a sua sequência, lançada em 1989, narram a passagem deles pelo purgatório.

Essas teorias chegam inclusive a filmes mais leves, como Grease – Nos Tempos da Brilhantina. No famoso musical, um dos versos da música “Summer Nights” que é cantado por Danny (John Travolta) diz como ele salvou Sandy (Olivia Newton-John) de se afogar. Apenas essa passagem foi suficiente para que muitos fãs teorizassem que Danny não conseguiu, de fato, salvá-la, e que ela se afogou. Sendo assim, o filme seria um sonho final de Sandy, no qual Danny a conduz para a vida pós-morte (o que, de certa forma, é uma metáfora interessante para a cena dos dois voando para o céu a bordo de um automóvel).

Esse tipo de teoria não poupa nem mesmo os filmes mais cultuados dos maiores diretores, visto que Taxi Driver, de Martin Scorsese, também é vítima desse tipo de pensamento. Em um filme que acompanha os delírios e os fluxos de pensamento do personagem Travis Bickle (Robert de Niro), é razoável imaginar que algumas cenas não são, de fato, reais, mas fruto dos pensamentos do personagem. Sendo assim, é compreensível que algumas pessoas acreditem que Travis não sobreviveu ao tiroteio no bordel, durante o qual ele foi gravemente ferido. Para essas pessoas, as cenas finais, que mostram manchetes de jornal exaltando Travis como um herói e o reencontro dele com Betsy (Cybill Shepherd),não passam dos sonhos e ilusões do personagem em seus momentos finais, no qual é mostrado aquilo que ele acredita ou espera que teria acontecido caso ele sobrevivesse.

Em todos os exemplos acima, existem argumentos a favor dessas teorias e argumentos que as tornam absurdas. Seja pela própria proposta que o filme estabelece e alimenta ou pela dificuldade de uma pessoa comum em escapar das situações mostradas, somos levados a questionar como tais personagens sobreviveram. Em geral, esse questionamento assume a forma apenas de uma incredulidade passageira no momento em que saímos do cinema. Levar esse pequeno momento de desconfiança para a elaboração de uma enorme teoria é algo divertido para se propor um debate, mas muitas vezes tais teorias são levadas a extremos grandes demais que as tornam extravagantes e tão inacreditáveis quanto os filmes e as cenas sobre os quais elas falam. Às vezes, os personagens só sobreviveram mesmo.

PARA NOS FAZER DUVIDAR DE TUDO

Vale lembrar que a margem para a existência dessas teorias é criada por aspectos apresentados no próprio enredo e na trama do filme. Pequenos detalhes que levantam as suspeitas dos espectadores. E muitas vezes, é a própria intenção dos diretores colocar esses detalhes para criar exatamente esse tipo de discussão, dando a seus filmes um ar de mistério que propicia um debate sobre o seu real significado. No caso da teoria de que algumas cenas do filme são fruto de um sonho ou alucinação, esses detalhes propositais procuram criar um duplo sentido nas cenas em questão.

Um exemplo já clássico de como uma cena pode ser construída para confundir seus espectadores é o final de O Vingador do Futuro, a versão original de Paul Verhoeven, lançada em 1990. Nesse filme, acompanhamos Doug (Arnold Schwarzenegger), que ao visitar um centro de implante de memória, decide ter a vida de um agente secreto. Contudo, o implante o faz reviver memórias antigas de quando ele atuava como Hauser, um agente da resistência dos colonos de Marte. Enquanto luta para desvendar seu passado e sua identidade, Doug/Hauser é constantemente levado a pensar que o que está vivendo não passa de um sonho, uma memória implantada no centro, e que nada daquilo é de fato real. Por várias vezes, o espectador se questiona se aquilo é verdadeiro ou não, até um momento em que o filme praticamente convence o espectador de que aquilo é real. Mas então, na cena final, a dúvida é implantada mais uma vez, pois não só a cena é quase uma réplica de uma anterior, na qual Doug tem um pesadelo, como o próprio personagem reconhece a possibilidade ao dizer a frase “Acabei de ter um pensamento horrível: e se tudo isso for um sonho?”, plantando a dúvida de vez na cabeça do espectador sem oferecer uma resposta definitiva.

Outro filme cuja proposta é justamente brincar com a ideia de manipulação de sonhos é o consagrado A Origem, de Christopher Nolan, cuja cena final é alvo de intensos debates até os dias de hoje, passados mais de dez anos. O filme lida com a possibilidade de manipulação das pessoas através dos sonhos e, logo de início, estabelece a possibilidade de alguém ficar tanto tempo dentro do mundo dos sonhos que não é capaz de definir mais o que é realidade, a não ser por um pequeno amuleto que ele sempre carrega. Essa premissa é levada para o final do filme, quando o personagem de Leonardo DiCaprio, Cobb, após cumprir suas funções e dar a seus clientes aquilo que eles desejam, conseguem finalmente retornar para casa e rever os seus filhos. Mas o próprio Cobb se sente inseguro diante da possibilidade e pega o seu amuleto, um pião que não pararia de rodar no mundo dos sonhos, para ter certeza. Contudo, a visão de seus filhos o faz se esquecer do amuleto, que fica rodando na mesa por alguns segundo e inclusive ameaça cair, mas nunca o faz até que a cena fica escura e o filme acaba.

Por anos, fãs têm debatido se, no final, aquele reencontro era um sonho de Cobb ou se era a realidade. E mesmo agora, depois de o ator Michael Caine ter dito que qualquer cena na qual ele aparecesse no filme se passava na realidade, muitos parecem insatisfeitos e mantêm o debate vivo.

Em filmes que acompanham o pensamento de um protagonista, seu dia-a-dia e, inclusive, seus delírios, é comum que diretores estabeleçam cenas que o público não tem certeza se são reais ou não. No caso de Coringa, a ideia é que o protagonista Arthur (Joaquin Phoenix) sofre de um grave distúrbio no qual ele imagina muitas coisas como sendo reais. Sua relação com o apresentador Murray (Robert de Niro), o fato de Thomas Wayne (Brett Cullen) ser o seu pai, seu relacionamento com Sophie (Zazie Beetz), são tudo fruto de seus delírios. Quando nos damos conta disso, começamos a nos perguntar o que do que está sendo mostrado é real e o que está acontecendo apenas na cabeça de Arthur. No final, diante da cena em que Arthur é confrontado com uma entrevistadora no manicômio, somos levados inclusive a questionar se todo o filme realmente aconteceu ou se foram apenas as ilusões e os desejos dele.

Grandes diretores são capazes de usar a incerteza para fazer seu público pensar e imaginar possibilidades verossímeis para aquilo que foi mostrado. Quando são bem-sucedidos, esses cineastas conseguem fazer com que suas obras sejam debatidas e permaneçam relevantes por inúmeros anos.

QUANDO O SONHO SAI ERRADO

No geral, a teoria de que tudo não passa de um sonho funciona melhor em filmes que não deixam isso explícito e permitem ao seu público debater sobre a possibilidade de isso ser real. Filmes que admitem que tudo de fato não passa de um sonho tendem a não ser tão valorizados e, inclusive, acabam fracassando em cativar o público. Isso acontece principalmente porque, além de impedir que as pessoas pensem sobre o que estão assistindo e debatam sobre as cenas em questão, reconhecer que tudo não passou de um sonho acaba se tornando uma saída fácil de enredo, tirando completamente a tensão que a cena teria se ela fosse real.

A saída do sonho é interessante quando é apenas sugerida, sem que sua existência possibilite uma saída fácil para os protagonistas. Em muitos casos, inclusive a sugestão bem feita de que tudo não passa de um sonho pode tornar a situação do personagem ainda pior. Nos exemplos acima, as teorias sugerem ou que os personagens estão mortos e as cenas finais são seus delírios finais, ou que eles estão presos em alguma situação deplorável na qual o final feliz surge apenas como uma possibilidade para a mente deles. Nesses casos, a personagem começa a sonhar depois que a situação horrível aconteceu, não antes. A situação não é fruto do sonho, mas é o que desencadeia o mesmo. E nesses casos, temos geralmente bons filmes que são debatidos constantemente por seus finais ambíguos. Mas quando toda a situação acontece apenas no sonho, e ao acordar a personagem se vê livre dela, o que é provocado no expectador é uma infeliz sensação de trapaça.

Um dos casos mais aparentes desse erro cometido pelos cineastas é o filme O Vidente, que apresenta Nicolas Cage como um mago capaz de ver o futuro e que é perseguido pelo FBI, que pretende usar suas habilidades para impedir um ataque terrorista. Mesmo relutante, ele acaba ajudando os agentes, mas quando chega o clímax da história, ele é incapaz de impedir a explosão de uma bomba na cidade, com consequências devastadoras para todos. Por um breve momento, parece que o filme está prestes a tomar uma atitude ousada, encerrando sua história daquela forma e dizendo que mesmo um homem capaz de prever o futuro não conseguiu impedí-lo. Mas então, o filme volta atrás e revela que aquilo tudo não passou de um sonho do personagem, que agora tem a localização exata da bomba e de onde o ataque vai ocorrer, sem precisar se arriscar efetivamente.

Outro caso onde a revelação de uma visão prova-se um verdadeiro tiro no pé para os cineastas foi o desfecho de A Saga Crepúsculo: Amanhecer, Parte 2. O que se inicia como uma luta acirrada entre a família Cullen e os Volturi, em que vampiros e lobisomens lutam lado a lado para proteger a família de Bella (Kristen Stewart) e Edward (Robert Pattinson), logo no final se revela como uma visão que a vidente Alice (Ashley Greene) compartilha com o líder dos Volturi, Aro (Michael Sheen), sobre o que vai acontecer se ele decidir lutar. Toda a tensão, a tristeza e a excitação da batalha final entre os dois lados é quebrada pelo fato de que tudo não passou de uma ilusão, e que todas as mortes, sacrifícios e conflitos daquela última cena não foram reais.

Apostar na ideia de um sonho sempre é um negócio arriscado, principalmente se o seu objetivo é justamente definir o sonho como o que de fato aconteceu, e não como uma teoria possível para se entender o seu filme.

POR QUE PRECISA SER UM SONHO?

A ilusão, o delírio e a fantasia são sempre saídas possíveis quando um filme aborda o tratamento de um personagem, e o cinema possui uma grande capacidade para criar tramas intrincadas que provocam dúvida na audiência. O espectador tem sempre que se lembrar que o que está sendo mostrado na tela não é, necessariamente, a realidade do universo em que o filme se passa, podendo incluir tanto o que de fato aconteceu quanto a visão dos personagens sobre o que aconteceu e, inclusive, seus delírios e alucinações.

A verdade é que sonhos são uma resposta simples para as pessoas aceitarem situações inacreditáveis, e mesmo que a graça do cinema seja justamente abrir espaço para a aceitação do fantasioso, nossos cérebros nem sempre conseguem aceitar algumas coisas completamente improváveis. Nesses casos, o sonho pode surgir como uma resposta mais fácil para uma determinada situação, desde que esta resposta seja possibilitada pelo enredo.

Mas é preciso ter cuidado ao lidar com essa possibilidade. O sonho funciona como estratégia narrativa desde que não elimine as consequências das ações do personagem e que, ao contrário, crie situações que explorem ao máximo as possibilidades narrativas. Isso porque, mesmo nos filmes onde a teoria do sonho surge para justificar um final feliz improvável, essa nova possibilidade abre uma nova explicação para o filme e pode levar as pessoas a analisarem muitas outras cenas do filme. Tal teoria funciona nos casos em que atua como uma ampliadora de possibilidades narrativas, não como uma resposta definitiva para elas.

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Muitos filmes brincam com a nossa noção da realidade e nos fazem questionar aquilo que vemos em cena. Em muitos desses casos, o povo tem a ideia de estar presenciando um sonho da protagonista ou um delírio. Confira com a gente alguns exemplos de onde essa teoria já foi empregada

escrito por
Luis Henrique Franco
9/10/2020
nascimento

Muitos filmes brincam com a nossa noção da realidade e nos fazem questionar aquilo que vemos em cena. Em muitos desses casos, o povo tem a ideia de estar presenciando um sonho da protagonista ou um delírio. Confira com a gente alguns exemplos de onde essa teoria já foi empregada

escrito por
Luis Henrique Franco
9/10/2020

Uma coisa que o cinema proporcionou ao público ao longo dos anos foi a capacidade de desenvolver teorias, das que fazem mais sentido às mais malucas. Seja para pensar sobre os filmes “cult” ou especular sobre o destino dos personagens em alguma franquia, muitos cineastas colocam detalhes em suas tramas que não passam despercebidos pela audiência e que são colocados ali justamente para provocar esse tipo de pensamento extra.

Entre as diversas teorias criadas para os mais diversos filmes e séries, no entanto, nenhuma parece ser mais recorrente e relembrada do que a teoria de que tudo o que foi mostrado no filme, ou pelo menos uma cena de extrema importância (muitas vezes a cena final), não passou de um sonho ou alucinação do personagem principal. Nesses casos, o protagonista do longa geralmente se encontra em alguma situação de dificuldade ou de ameaça da qual ele não conseguirá sair e, em consequência disso, acaba imaginando um cenário no qual ele se veria livre dessa situação, o “final feliz” que ele não conseguirá alcançar.

Muitas vezes introduzida pelos próprios diretores do filme como uma espécie de provocação para o pensamento do público, esse tipo de teoria é pensada para muitos filmes que, muitas vezes, não tinham esse tipo de possibilidade em mente. Ao que parece, sempre que um personagem se encontra em alguma situação da qual ele não teria quase nenhuma chance de escapar, essa teoria volta a ressurgir, quer ela faça sentido dentro daquela trama ou não.

NENHUMA ESCAPATÓRIA ALÉM DO SONHO?

Filmes e séries tem uma liberdade enorme para pensar em soluções para o impossível e colocar seus personagens em situações extremamente terríveis e, de alguma forma, fazer com que eles escapem. Em geral, o público aceita as soluções propostas e é capaz de se afastar da visão pragmática sobre realidade e entender que, em produções do cinema, algumas regras podem ser quebradas.

Contudo, alguns espectadores, após analisar as cenas em questão, chegam à conclusão de que seria impossível, mesmo dentro dos padrões do cinema e das regras estabelecidas para aquele universo cinematográfico, para o personagem sobreviver à determinada situação. Com base nesse pressuposto, a introdução da ideia do sonho surge para justificar como as cenas seguintes, que geralmente mostram um final feliz para o personagem em questão, podem estar nos filmes.

Não precisa necessariamente ser um sonho, podendo também ser a ideia de uma passagem para um mundo espiritual pós-morte. Uma teoria semelhante foi apresentada para a animação Up: Altas Aventuras, da Pixar. Famoso por sua introdução, que acompanha a vida de Carl e Ellie até o triste momento da morte dela, o filme então segue Carl, já bastante velho, em sua jornada para levar a casa onde viveu com sua amada para o Paraíso das Cachoeiras, na América do Sul. Nessa jornada, ele é acompanhado pelo jovem escoteiro Russell. A teoria conta que Carl na realidade faleceu, e que Russell é um anjo enviado para guiar a sua alma para o céu, representado no filme pelo Paraíso das Cachoeiras.

Às vezes, tais teorias surgem a partir de regras estabelecidas pelos próprios filmes, mas que parecem ser ignoradas a partir de certo momento. Em Os Caça-Fantasmas, o Dr. Egon Spengler (Harold Raimis) afirma desde o começo das operações do grupo de investigações paranormais de que cruzar os raios usados para capturar os fantasmas poderia resultar em uma catástrofe que ceifaria a vida do grupo. No entanto, durante a batalha final contra o terrível Gozer (Slavitza Jovan) e o icônico boneco de marshmallow gigante, o próprio Dr. Egon diz ao grupo para ignorarem o que ele havia dito e cruzarem os raios em uma tentativa de deter o vilão. O resultado é uma enorme explosão que bane o mal, mas que aparentemente não mata os Caça-Fantasmas. Pois bem, de acordo com uma teoria, os quatro foram mortos durante a explosão, e tanto o final do filme quanto a sua sequência, lançada em 1989, narram a passagem deles pelo purgatório.

Essas teorias chegam inclusive a filmes mais leves, como Grease – Nos Tempos da Brilhantina. No famoso musical, um dos versos da música “Summer Nights” que é cantado por Danny (John Travolta) diz como ele salvou Sandy (Olivia Newton-John) de se afogar. Apenas essa passagem foi suficiente para que muitos fãs teorizassem que Danny não conseguiu, de fato, salvá-la, e que ela se afogou. Sendo assim, o filme seria um sonho final de Sandy, no qual Danny a conduz para a vida pós-morte (o que, de certa forma, é uma metáfora interessante para a cena dos dois voando para o céu a bordo de um automóvel).

Esse tipo de teoria não poupa nem mesmo os filmes mais cultuados dos maiores diretores, visto que Taxi Driver, de Martin Scorsese, também é vítima desse tipo de pensamento. Em um filme que acompanha os delírios e os fluxos de pensamento do personagem Travis Bickle (Robert de Niro), é razoável imaginar que algumas cenas não são, de fato, reais, mas fruto dos pensamentos do personagem. Sendo assim, é compreensível que algumas pessoas acreditem que Travis não sobreviveu ao tiroteio no bordel, durante o qual ele foi gravemente ferido. Para essas pessoas, as cenas finais, que mostram manchetes de jornal exaltando Travis como um herói e o reencontro dele com Betsy (Cybill Shepherd),não passam dos sonhos e ilusões do personagem em seus momentos finais, no qual é mostrado aquilo que ele acredita ou espera que teria acontecido caso ele sobrevivesse.

Em todos os exemplos acima, existem argumentos a favor dessas teorias e argumentos que as tornam absurdas. Seja pela própria proposta que o filme estabelece e alimenta ou pela dificuldade de uma pessoa comum em escapar das situações mostradas, somos levados a questionar como tais personagens sobreviveram. Em geral, esse questionamento assume a forma apenas de uma incredulidade passageira no momento em que saímos do cinema. Levar esse pequeno momento de desconfiança para a elaboração de uma enorme teoria é algo divertido para se propor um debate, mas muitas vezes tais teorias são levadas a extremos grandes demais que as tornam extravagantes e tão inacreditáveis quanto os filmes e as cenas sobre os quais elas falam. Às vezes, os personagens só sobreviveram mesmo.

PARA NOS FAZER DUVIDAR DE TUDO

Vale lembrar que a margem para a existência dessas teorias é criada por aspectos apresentados no próprio enredo e na trama do filme. Pequenos detalhes que levantam as suspeitas dos espectadores. E muitas vezes, é a própria intenção dos diretores colocar esses detalhes para criar exatamente esse tipo de discussão, dando a seus filmes um ar de mistério que propicia um debate sobre o seu real significado. No caso da teoria de que algumas cenas do filme são fruto de um sonho ou alucinação, esses detalhes propositais procuram criar um duplo sentido nas cenas em questão.

Um exemplo já clássico de como uma cena pode ser construída para confundir seus espectadores é o final de O Vingador do Futuro, a versão original de Paul Verhoeven, lançada em 1990. Nesse filme, acompanhamos Doug (Arnold Schwarzenegger), que ao visitar um centro de implante de memória, decide ter a vida de um agente secreto. Contudo, o implante o faz reviver memórias antigas de quando ele atuava como Hauser, um agente da resistência dos colonos de Marte. Enquanto luta para desvendar seu passado e sua identidade, Doug/Hauser é constantemente levado a pensar que o que está vivendo não passa de um sonho, uma memória implantada no centro, e que nada daquilo é de fato real. Por várias vezes, o espectador se questiona se aquilo é verdadeiro ou não, até um momento em que o filme praticamente convence o espectador de que aquilo é real. Mas então, na cena final, a dúvida é implantada mais uma vez, pois não só a cena é quase uma réplica de uma anterior, na qual Doug tem um pesadelo, como o próprio personagem reconhece a possibilidade ao dizer a frase “Acabei de ter um pensamento horrível: e se tudo isso for um sonho?”, plantando a dúvida de vez na cabeça do espectador sem oferecer uma resposta definitiva.

Outro filme cuja proposta é justamente brincar com a ideia de manipulação de sonhos é o consagrado A Origem, de Christopher Nolan, cuja cena final é alvo de intensos debates até os dias de hoje, passados mais de dez anos. O filme lida com a possibilidade de manipulação das pessoas através dos sonhos e, logo de início, estabelece a possibilidade de alguém ficar tanto tempo dentro do mundo dos sonhos que não é capaz de definir mais o que é realidade, a não ser por um pequeno amuleto que ele sempre carrega. Essa premissa é levada para o final do filme, quando o personagem de Leonardo DiCaprio, Cobb, após cumprir suas funções e dar a seus clientes aquilo que eles desejam, conseguem finalmente retornar para casa e rever os seus filhos. Mas o próprio Cobb se sente inseguro diante da possibilidade e pega o seu amuleto, um pião que não pararia de rodar no mundo dos sonhos, para ter certeza. Contudo, a visão de seus filhos o faz se esquecer do amuleto, que fica rodando na mesa por alguns segundo e inclusive ameaça cair, mas nunca o faz até que a cena fica escura e o filme acaba.

Por anos, fãs têm debatido se, no final, aquele reencontro era um sonho de Cobb ou se era a realidade. E mesmo agora, depois de o ator Michael Caine ter dito que qualquer cena na qual ele aparecesse no filme se passava na realidade, muitos parecem insatisfeitos e mantêm o debate vivo.

Em filmes que acompanham o pensamento de um protagonista, seu dia-a-dia e, inclusive, seus delírios, é comum que diretores estabeleçam cenas que o público não tem certeza se são reais ou não. No caso de Coringa, a ideia é que o protagonista Arthur (Joaquin Phoenix) sofre de um grave distúrbio no qual ele imagina muitas coisas como sendo reais. Sua relação com o apresentador Murray (Robert de Niro), o fato de Thomas Wayne (Brett Cullen) ser o seu pai, seu relacionamento com Sophie (Zazie Beetz), são tudo fruto de seus delírios. Quando nos damos conta disso, começamos a nos perguntar o que do que está sendo mostrado é real e o que está acontecendo apenas na cabeça de Arthur. No final, diante da cena em que Arthur é confrontado com uma entrevistadora no manicômio, somos levados inclusive a questionar se todo o filme realmente aconteceu ou se foram apenas as ilusões e os desejos dele.

Grandes diretores são capazes de usar a incerteza para fazer seu público pensar e imaginar possibilidades verossímeis para aquilo que foi mostrado. Quando são bem-sucedidos, esses cineastas conseguem fazer com que suas obras sejam debatidas e permaneçam relevantes por inúmeros anos.

QUANDO O SONHO SAI ERRADO

No geral, a teoria de que tudo não passa de um sonho funciona melhor em filmes que não deixam isso explícito e permitem ao seu público debater sobre a possibilidade de isso ser real. Filmes que admitem que tudo de fato não passa de um sonho tendem a não ser tão valorizados e, inclusive, acabam fracassando em cativar o público. Isso acontece principalmente porque, além de impedir que as pessoas pensem sobre o que estão assistindo e debatam sobre as cenas em questão, reconhecer que tudo não passou de um sonho acaba se tornando uma saída fácil de enredo, tirando completamente a tensão que a cena teria se ela fosse real.

A saída do sonho é interessante quando é apenas sugerida, sem que sua existência possibilite uma saída fácil para os protagonistas. Em muitos casos, inclusive a sugestão bem feita de que tudo não passa de um sonho pode tornar a situação do personagem ainda pior. Nos exemplos acima, as teorias sugerem ou que os personagens estão mortos e as cenas finais são seus delírios finais, ou que eles estão presos em alguma situação deplorável na qual o final feliz surge apenas como uma possibilidade para a mente deles. Nesses casos, a personagem começa a sonhar depois que a situação horrível aconteceu, não antes. A situação não é fruto do sonho, mas é o que desencadeia o mesmo. E nesses casos, temos geralmente bons filmes que são debatidos constantemente por seus finais ambíguos. Mas quando toda a situação acontece apenas no sonho, e ao acordar a personagem se vê livre dela, o que é provocado no expectador é uma infeliz sensação de trapaça.

Um dos casos mais aparentes desse erro cometido pelos cineastas é o filme O Vidente, que apresenta Nicolas Cage como um mago capaz de ver o futuro e que é perseguido pelo FBI, que pretende usar suas habilidades para impedir um ataque terrorista. Mesmo relutante, ele acaba ajudando os agentes, mas quando chega o clímax da história, ele é incapaz de impedir a explosão de uma bomba na cidade, com consequências devastadoras para todos. Por um breve momento, parece que o filme está prestes a tomar uma atitude ousada, encerrando sua história daquela forma e dizendo que mesmo um homem capaz de prever o futuro não conseguiu impedí-lo. Mas então, o filme volta atrás e revela que aquilo tudo não passou de um sonho do personagem, que agora tem a localização exata da bomba e de onde o ataque vai ocorrer, sem precisar se arriscar efetivamente.

Outro caso onde a revelação de uma visão prova-se um verdadeiro tiro no pé para os cineastas foi o desfecho de A Saga Crepúsculo: Amanhecer, Parte 2. O que se inicia como uma luta acirrada entre a família Cullen e os Volturi, em que vampiros e lobisomens lutam lado a lado para proteger a família de Bella (Kristen Stewart) e Edward (Robert Pattinson), logo no final se revela como uma visão que a vidente Alice (Ashley Greene) compartilha com o líder dos Volturi, Aro (Michael Sheen), sobre o que vai acontecer se ele decidir lutar. Toda a tensão, a tristeza e a excitação da batalha final entre os dois lados é quebrada pelo fato de que tudo não passou de uma ilusão, e que todas as mortes, sacrifícios e conflitos daquela última cena não foram reais.

Apostar na ideia de um sonho sempre é um negócio arriscado, principalmente se o seu objetivo é justamente definir o sonho como o que de fato aconteceu, e não como uma teoria possível para se entender o seu filme.

POR QUE PRECISA SER UM SONHO?

A ilusão, o delírio e a fantasia são sempre saídas possíveis quando um filme aborda o tratamento de um personagem, e o cinema possui uma grande capacidade para criar tramas intrincadas que provocam dúvida na audiência. O espectador tem sempre que se lembrar que o que está sendo mostrado na tela não é, necessariamente, a realidade do universo em que o filme se passa, podendo incluir tanto o que de fato aconteceu quanto a visão dos personagens sobre o que aconteceu e, inclusive, seus delírios e alucinações.

A verdade é que sonhos são uma resposta simples para as pessoas aceitarem situações inacreditáveis, e mesmo que a graça do cinema seja justamente abrir espaço para a aceitação do fantasioso, nossos cérebros nem sempre conseguem aceitar algumas coisas completamente improváveis. Nesses casos, o sonho pode surgir como uma resposta mais fácil para uma determinada situação, desde que esta resposta seja possibilitada pelo enredo.

Mas é preciso ter cuidado ao lidar com essa possibilidade. O sonho funciona como estratégia narrativa desde que não elimine as consequências das ações do personagem e que, ao contrário, crie situações que explorem ao máximo as possibilidades narrativas. Isso porque, mesmo nos filmes onde a teoria do sonho surge para justificar um final feliz improvável, essa nova possibilidade abre uma nova explicação para o filme e pode levar as pessoas a analisarem muitas outras cenas do filme. Tal teoria funciona nos casos em que atua como uma ampliadora de possibilidades narrativas, não como uma resposta definitiva para elas.

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