Quando nos deparamos com personagens icônicos que já existem há anos em nossa cultura popular, arcamos com o fato de que, no cinema, tal personagem será revivido constantemente e reencarnado em diversos atores e atrizes ao longo dos anos. Infelizmente, nem todas essas reencarnações são aclamadas, mesmo algumas feitas por celebridades memoráveis. Em sua segunda tentativa de adaptar o icônico detetive de Agatha Christie, Kenneth Branagh ainda está longe de todo o potencial e clamor do grande Hercule Poirot. E mesmo que Morte no Nilo apresente notáveis melhoras quando comparado ao fiasco de Assassinato no Expresso do Oriente, ainda é um filme muito inferior à obra original e que peca em alguns dos mesmos lugares que seu antecessor.
Deixando o filme anterior de lado, Morte no Nilo apresenta Poirot (Branagh) curtindo suas férias pelo Egito e se encontrando com seu amigo, Mounsieur Bouc (Tom Bateman), que o leva para passar seu tempo na viagem de celebração do casamento de Linnet Ridgeway (Gal Gadot) e Simon Doyle (Armie Hammer). Mas quando a viagem pelo Nilo é interrompida por um terrível assassinato à bordo, Poirot inicia sua investigação e desvenda segredos a respeito da vítima e de todos os integrantes à bordo.
Para aqueles que acompanham as tentativas de Branagh de adaptar o grande detetive de Agatha Christie, existe uma diferença notória entre essa nova produção e Assassinato no Expresso do Oriente, mostrando que o ator e diretor certamente percebeu alguns de seus erros anteriores e tenta corrigi-los nesse segundo filme. Assim, o desenrolar da trama é realizado de uma maneira mais lenta, acompanhando Poirot enquanto ele investiga o caso, entrevista os passageiros e recolhe todas as pistas necessárias, montando suas próprias deduções com paciência e permitindo ao espectador acompanhar seu raciocínio.
O primeiro ato do filme é particularmente interessante pela demora do filme em entrar no caso em si. Ao invés de apressar seu caminho até o momento do crime, Morte no Nilo opta por dedicar um longo tempo aos seus personagens, desenvolvendo com calma suas relações e permitindo ao público criar conexões com os personagens e entender sua importância na história, suas relações entre si e os motivos que os levariam a cometer o crime. Além disso, esse tempo a mais é bastante dedicado à construção de Poirot, tirando-o do estereótipo do detetive frio e dedutivo e humanizando-o através de suas reações mais naturais e emotivas aos ocorridos. A próprias temática ao qual o filme se dedica, o amor e as relações amorosas entre pessoas, força o detetive a se abrir mais ao público, o que por um lado o torna mais simpático, mesmo que por outro suas reações muitas vezes acabem caindo em exageros cafonas.
Além disso, esse tempo dedicado à construção do personagem e da situação, por melhor que seja para a conexão da audiência com o filme, acaba se estendendo demais e se torna cansativo, ao ponto de que as reações dos personagens uns aos outros se tornam repetitivas e imploram pelo momento do crime para ter algo novo a mostrar para o público.
Um dos principais pontos que Morte no Nilo tenta concertar com relação a Assassinato no Expresso do Oriente são os exageros dramáticos aos quais a narrativa se entrega. Se por um lado o filme de 2017 tentava tornar toda a sua trama heroica e grandiosa, levando a momentos realmente embaraçosos e atuações caricatas e pesadas, Este filme contém o seu desejo pelo exagero dramático. As conversas entre Poirot e o resto da tripulação são, em sua maioria, comedidas e sem grandes explosões, a investigação segue passos sutis e não tenta tornar cada pequena descoberta em algo mirabolante. Existem momentos em que a dramatização cede ao exagero, criando momentos que se destacam demais na narrativa, destoando do restante do filme e fazendo o público se dispersar dos acontecimentos. O interrogatório de Bouc (Bateman) é um desses exemplos, na qual toda a construção da cena é levada a um extremo que tira a seriedade que o momento deveria ter.
Por outro lado, a cena final, na qual Poirot reúne os tripulantes e explica seu processo de investigação e sua conclusão (uma cena clássica nas histórias de Christie) é notavelmente mais contida e realista. Existem algumas explosões dramáticas que conferem à cena o tom necessário ao clímax da história, mas nada é elevado a extremos e a situação se mantém bastante crível e dentro do proposto pela trama até então.
Essa divisão entre exagero e realismo também se mostra muito aparente nas atuações do elenco. Kenneth Branagh por si só já apresenta inúmeros altos e baixos, geralmente mantendo o personagem em uma atuação bastante humana e convincente pela maior parte do tempo, mas não resistindo a alguns momentos de explosão dramática desnecessária que o tiram completamente do personagem. Do resto de elenco, pode-se destacar as atuações de Gal Gadot e Tom Bateman, que se solidificaram bem nas propostas de seus personagens e tiveram atuações boas, embora não espetaculares. Letitia Wright e Sophie Okonedo também apresentam interpretações envolventes que, embora não chamem muita atenção para si, também não comprometem o filme e sustentam bem os personagens.
Do outro lado da moeda, porém, temos Armie Hammer e Emma Mackey, cujas atuações são tão caricatas e as reações dramáticas são tão exageradas que beiram ao ridículo. Além deles, outra atriz que parece deslocada no filme é Annette Bening, que entrega uma atuação aquém do seu talento e não consegue dar à sua personagem o valor que ela deveria ter.
Apresentando melhorias na saga de Branagh em adaptar Agatha Christie, Morte no Nilo é um filme mais interessante e divertido de assistir, que quase consegue superar as suas falhas completamente. Mas as extravagâncias do roteiro e do protagonista ainda afastam essa obra de ser uma boa adaptação da renomada escritora, e o filme, apesar de ser uma experiência de entretenimento satisfatória no fim das contas, ainda assim passa longe do livro que o originou.
O filme estreias nos cinemas dia 10 de fevereiro.