Vivemos uma onda de negacionismo no mundo que atingiu níveis absurdos, com pessoas se negando a acreditar até mesmo nas coisas mais óbvias e comprovadas pela ciência. Alimentada por políticos, celebridades e influenciadores, essa onda tem provocado grandes problemas no mundo e vem sendo duramente combatida e criticada. No cinema, essas críticas vêm em forma de dramas bastante contundentes, mas também podem vir na forma de comédias ácidas que mostram a catástrofe potencial que pode decorrer dessas crenças.
Não Olhe Para Cima é uma dessas comédias ácidas que explora a possibilidade de um evento cataclísmico para debochar dos negacionistas e criticar a forma como políticos e governos permitem que essas crenças controlem as decisões tomadas, mesmo que elas não façam o menor sentido. A ideia do filme apresenta um evento hipotético, na qual dois cientistas, Randall Mindy (Leonardo DiCaprio) e Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) descobrem um enorme cometa avançando em direção à Terra. Com a iminência do impacto, eles tentam alertar o mundo para que medidas sejam tomadas, mas tanto o governo dos Estados Unidos quanto a mídia em geral fazem pouco caso de seu alerta, tratando-os como alarmistas e questionando a validade de seus testes.
Tendo já trabalhado com questões políticas em seus filmes anteriores (A Grande Aposta e Vice), Adam McKay construiu um estilo próprio de tratar assuntos sérios e complexos com um toque de comédia satírica, diálogos ácidos e situações absurdas mas reais. Não Olhe Para Cima foge em parte dessa premissa por não apresentar uma história baseada em fatos reais, permitindo ao diretor e roteirista alguns exageros que tornam o filme mais engraçado sem, contudo, tirar o seu olhar afiado para o mundo. Por não estar preso a eventos reais que precisam ser devidamente contados, o filme pode se dar ao luxo de extrapolar as características de seus personagens, tornando-os extremamente odiáveis ou cômicos para aumentar o seu ponto de vista para o público.
Com essa capacidade em mãos, McKay critica o governo, a mídia, os movimentos sociais, os partidos políticos, os grandes empresários e o mundo da tecnologia atual, tudo em uma mesma trama que conecta esses temas de maneira bastante forte, sem trair a sua história em nenhum ponto e mantendo o foco naquilo que ele deseja transmitir. Ao colocar dois cientistas como protagonistas, o filme nunca duvida de que o que eles afirmam é verdade, mas aponta para a dificuldade de ambos em divulgar sua descoberta e em serem ouvidos. Por mais que tentem, Mindy e Dibiasky são rechaçados e humilhados pelo governo, não conseguem a atenção da mídia e, quando a conseguem, são extremamente criticados por outros pesquisadores contratados pelo governo e por pessoas que preferem transformá-los em piadas a ouvi-los.
O filme poderia ter prosseguido com essa ideia da dificuldade em fazer os cientistas serem ouvidos, mas McKay assume um novo aspecto ao estabelecer um momento em que o governo admite que ambos estão certos e se dispõe a uma ação, mas são levados a mudarem de lado novamente sob a influência de um poderoso magnata do ramo de tecnologia (Mark Rylance), que estabelece seu próprio plano tendo em vista o seu lucro pessoal, comprometendo a segurança do planeta para o seu próprio ganho.
Para além da questão política e da influência de empresários e da tecnologia no nosso dia-a-dia, Não Olhe Para Cima também estabelece diversos pontos importantes sobre vários aspectos presentes na nossa sociedade contemporânea, como a forma fácil com que informação e, especialmente, desinformação circulam pelas redes sociais, a forma como a mídia muitas vezes usa de chacota e humilhação ao invés de argumentos para desmerecer ideias e a atenção exagerada que se dá a questões menores e até mesmo banais em detrimento de aspectos realmente relevantes para a nossa vida. Seus pontos de vista são tão bem colocados que o aspecto do fim do mundo, por mais que seja o grande motivador da trama, acaba se tornando apenas um mobilizador, e não o foco principal do enredo, mostrando um bom uso de um evento fictício para promover debates sobre o mundo real.
Para além de um roteiro e uma direção bastante atentas a esses detalhes, o filme também conta com atuações espetaculares de um elenco de peso. às performances de DiCaprio e Lawrence se junta a de Rob Morgan, no papel de um importante diretor da NASA e único membro do governo a apoiar os pesquisadores, como o trio de protagonistas que lutam desesperadamente para impedir o fim do mundo. Do outro lado, temos um grande número de excelentes atores em papéis feitos para serem odiados, como Jonah Hill no papel do Chefe de Gabinete do governo, Cate Blanchett como a âncora de um programa de notícias e fofocas e Ron Perlman como um veterano do exército e figura cheia de opiniões polêmicas. E, como cereja desse bolo de grandes atuações, temos Meryl Streep interpretando a presidente dos Estados Unidos, uma mulher mais preocupada com seu próprio futuro político do que com o bem estar da população e que faz de tudo para calar a voz dos cientistas e alimentar o movimento que nega a existência do cometa. Papel este que ela entrega com astuta perfeição.
Não Olhe Para Cima é um filme estranho para o período natalino, mas um que provoca uma delicada reflexão sobre nossa vida atual e sobre os perigos do negacionismo na nossa sociedade. Usando da ficção científica e do humor, ele consegue encarar o fim do mundo com um olhar sério escondido sobre seu humor ácido e seus comentários nada sutis sobre o comportamento da sociedade.
O novo filme de Adam McKay está disponível pela plataforma da Netflix e em cinemas selecionados. Confira!