Em 1941, era lançado nos cinemas o filme Cidadão Kane, obra que se tornou uma das maiores e melhores produções do cinema americano, sendo reverenciado até hoje por sua história, direção e construção de seu protagonista. Com uma mensagem soberba sobre sucesso, riqueza e o valor das coisas, o filme foi tanto criticado quanto aclamado, e colocou Orson Welles na lista dos melhores diretores da história.
Recentemente, a Netflix anunciou um novo filme que tem como premissa explorar a história sobre a produção e o processo de escrita do roteiro desse filme. No entanto, ao contrário do que se poderia pensar, tal filme não será focado no trabalho de Welles, mas do segundo roteirista do filme, Herman J. Mankiewicz. Apesar de ser uma figura com anos de experiência em Hollywood, Mankiewicz não obteve tanto prestígio por esse filme quanto o diretor/ator.
Com essa nova produção prestes a estrear, vale a pena conferir um pouco mais sobre a história desses dois homens e sobre o filme que os uniu e os lançou à fama.
HERMAN J. MANKIEWICZ
Mesmo antes de trabalhar em Cidadão Kane, Herman Mankiewicz já era um nome conhecido em Hollywood. Além de um dos mais bem pagos roteiristas do cinema, ele também era chefe do departamento de roteiro da Paramount Pictures no final dos anos 20 e começo dos anos 30.

Tendo lutado na Primeira Guerra Mundial, Mankiewicz foi primeiramente contratado pela Red Cross News como jornalista e logo foi chamado pelo Chicago Tribune, pelo qual cobriu políticas como correspondente em Berlim. Após algum tempo atuando na Europa, ele retornou aos Estados Unidos e trabalhou tanto no New York Times quanto na revista The New Yorker. Foi só nos últimos anos do cinema mudo que Mankiewicz se mudou para Hollywood, onde começou trabalhando na produção de intertítulos.
Foi durante esses primeiros trabalhos que Mankiewicz revelou um grande talento para a escrita cinematográfica. Pouco tempo depois de começar, e tendo já trabalhado em clássicos como A Última Ordem, ele já era o roteirista mais bem pago de Hollywood, principalmente após o triunfo do cinema falado e da necessidade de diálogos reais, que pudessem ser falados pelos atores em cena. Nesse campo, Mankiewicz se superou com seus diálogos rápidos e nítidos e o seu gosto por sátiras, tendo trabalho muito nas produções dos Irmãos Marx, como Os Quatro Batutas (1931), Gênios da Pelota (1932) e O Diabo a Quatro (1933).
Contudo, foi justamente no auge de sua carreira que Mankiewicz começou a decair. O alcoolismo e o cinismo, através do qual ele admitia desprezar Hollywood, afetaram negativamente a sua carreira e, ao final da década de 30, sua reputação já havia sofrido um pesado golpe. Ironicamente, foi nesse período que ele foi contratado para co-escrever o longa Cidadão Kane, ao lado de Orson Welles, e seus vícios acabaram afetando seu trabalho, forçando Welles e colocá-lo sob vigilância para evitar que Mankiewicz caísse no alcoolismo enquanto trabalhava no roteiro.

O sucesso obtido com o filme impulsionou a sua carreira novamente, garantindo-lhe um Oscar de Melhor Roteiro e lhe fornecendo novas oportunidades como o trabalho no filme Ídolo, Amante e Herói (1942), pelo qual também foi indicado por roteiro, e como produtor em A Vida Íntima de uma Mulher (1949). Tal sucesso, porém, não o afastou de seus vícios e problemas. Na verdade, ele se afundou cada vez mais neles com o passar dos anos, até morrer de insuficiência renal em 1953, aos 55 anos.
Mankiewicz via com pessimismo os novos tempos do cinema da década de 40 e teve muitas dificuldades em se adequar à estrutura hierárquica cada vez mais crescente da indústria. Um produto dos tempos mais relaxados, quando os primeiros filmes falados começaram a ser lançados, ele pouco se adequou a esse novo modelo, tornando-se uma personalidade pouco confiável para o cinema hollywoodiano.
ORSON WELLES
Quando criança, Orson Welles era talentoso em diversos tipos de arte, incluindo piano e pintura. Orfão aos 15 anos, ele se tornou protegido do Dr. Maurice Bernstein em Chicago, e foi ele quem enviou Welles para a Todd School, em Woodstock, onde o rapaz descobriu a sua paixão pelo teatro. Após se formar, em 1931, Welles se uniu a uma pequena companhia e, em 1935, fez sua primeira aparição na Broadway, interpretando Tybalt em Romeu e Julieta. Tal performance atraiu a atenção do diretor John Houseman, que chamou Welles para se unir aos seus projetos teatrais.

A parceria entre Welles e Houseman foi bastante produtiva, gerando grandes adaptações de histórias famosas, como Macbeth e Júlio Cesar. Essas e muitas outras produções deram notoriedade ao Mercury Theatre, e impulsionou a carreira seguinte de Welles no rádio, onde ele obteve grande aclamação após a sua leitura do clássico de H.G. Wells, Guerra dos Mundos. O programa, que se assemelhou a uma transmissão de notícias, pareceu tão real que provocou pânico entre os leitores.

Após sua performance no rádio, Welles se tornou extremamente cobiçado em Hollywood nos Anos 40. Tendo firmado uma parceria com a RKO Pictures, ele ganhou total controle criativo sobre a produção e começou a trabalhar no seu primeiro filme: Cidadão Kane. Baseado na vida do magnata William R. Hearst, o filme conta a história do jornalista Charles Foster Kane, sua ascensão ao poder e a corrupção que este lhe causou. O longa teve uma recepção fraca no seu lançamento, provocada principalmente pela campanha difamatória feita por Hearst, mas seus pioneirismos técnicos e história extremamente bem montada logo o fizeram ser reconhecido como um dos melhores filmes já feitos.
Ainda a serviço da RKO, Welles trabalhou em Soberba (1942), um filme menos polêmico e que o ajudou a se assentar em Hollywood. Contudo, o diretor logo descobriu que o estúdio fez a sua própria edição de seu trabalhou, e repudiou o próprio trabalho, entrando em conflito com a RKO. Após esse confronto, a RKO Pictures qualificaria Welles como alguém difícil de se trabalhar, reputação da qual ele nunca se recuperou.
O diretor e ator encontrou dificuldade nos anos seguintes, tendo conseguido atuar em uma adaptação de Jane Eyre (1943) e dirigir filmes como O Estranho (1946) e Macbeth (1948). Após isso, ele se impôs um exílio de dez anos de Hollywood, afastando-se de todas as produções e só retornando em 1958, quando dirigiu A Marca da Maldade, filme que teve uma recepção negativa e enfrentou dificuldades nas bilheterias.
Durante as décadas de 60 e 70, Welles continuou a se manter ocupado com alguns projetos, mas sem nunca atingir o sucesso que conseguiu em seus primeiros anos. Ele também passou a enfrentar graves problemas de saúde, a maioria deles decorrendo de sua obesidade crescente. Em 1975, ele recebeu o Lifetime Achievement Award of the American Film Institute, sinalizando sua reconexão com Hollywood.
Em 1985, Welles recebeu também o D.W. Griffith Award do DGA, a maior honra dada pelo sindicato dos diretores. No mesmo ano, o diretor e ator viria a falecer aos 70 anos, vítima de um ataque cardíaco. Welles deixou para trás uma grande carreira como cineasta e como radialista, cheia de obras polêmicas, mas que conquistaram o seu lugar entre as maiores de seus respectivos setores.
CIDADÃO KANE
O filme que uniu Mankiewicz e Welles tem quase oitenta anos de idade e, ainda hoje, figura entre os melhores e mais importantes filmes já feitos. Não só pela sua história e pelo desenvolvimento de seus personagens, mas também por conta de suas técnicas e pela estruturação de seu roteiro.
A premissa básica para nos interessarmos por Charles Foster Kane (Orson Welles) é o fato de que, em seu leito de morte (a primeira cena do filme), ele profere uma palavra estranha, "Rosebud". Normalmente, isso não chamaria muita atenção, mas Kane era um grande magnata da mídia e uma das pessoas mais poderosas do mundo. Por causa disso, inúmeros repórteres se reúnem após a sua morte para tentar desvendar o que seria Rosebud. Seria uma amante secreta? Um amigo? Uma empresa?
A dúvida também atinge o espectador, e a partir daí somos conduzidos a uma história minuciosa sobre a vida de Kane, desde a sua infância até a sua ascensão ao poder e como este o corrompeu. Durante todo esse trajeto, nos questionamos sempre sobre o significado de Rosebud e porque isto seria tão importante para um cidadão tão ilustre. No final, porém, a revelação não diz respeito a nenhum momento marcante da vida do magnata, mas sim uma memória de sua vida mais simples quando criança.
A ideia de tamanho mistério funciona pois mantém o público atento à história, nos levando tanto a simpatizar com Kane em um primeiro momento quanto a repudiá-lo mais tarde, quando a corrupção começa a atingi-lo. O filme é marcante em sua crítica ao poder nas mãos de um só homem e faz diversos apontamentos e provocações a respeito de uma sociedade completamente dominada por alguns poucos homens de poder. Não à toa, o filme foi completamente boicotado por William R. Hearst, magnata midiático em quem Welles se inspirou para criar o personagem de Kane.

O boicote certamente funcionou. Na época de sua estreia, Cidadão Kane teve pouco sucesso nas bilheterias e quase não foi discutido pela população. Apesar de ter conquistado várias indicações ao Oscar, seu único prêmio foi o Oscar de Melhor Roteiro. Foi só depois de alguns anos que o filme foi recuperado e começou a finalmente ser visto pelo clássico e pelo grande filme inteligente que realmente é, abrindo caminho para diversos outros longas se valerem de suas técnicas e se inspirarem em sua trama para construírem novas histórias.
Cidadão Kane permanece como um marco que resistiu ao tempo e à censura. E hoje, oitenta anos depois de seu lançamento, ele volta a ocupar o centro das discussões. Dessa vez, porém, tais debates abrem os olhos para outros envolvidos no processo além de Orson Welles e lhes concedem o seu devido reconhecimento.

E você? Qual a sua opinião sobre esse grande clássico do cinema? Compartilhe com a gente!